CRÍTICA DO CAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI
Com Marx para além de Marx: o Projecto Teórico do Grupo "EXIT!"


O texto aqui apresentado procura sintetizar numa espécie de "instantâneo" o processo de elaboração teórica desenvolvido até hoje a partir da abordagem da crítica social defendida nesta página de Internet. Poderá servir como primeira orientação para novos interessados. É um texto programático, claro que não no sentido dum programa político, que estabeleça uma "linha", mas no sentido de um programa teórico, em muitos aspectos ainda a desenvolver.


Desde o fim dos anos 80, assistimos em todo o mundo à agonia do marxismo, do socialismo, do movimento operário, dos movimentos de libertação nacional, e não só. Também o clássico Estado de bem-estar social burguês está em desintegração, o paradigma keynesiano não passa agora duma nostalgia e os regimes do "desenvolvimento" no Terceiro Mundo desmoronam-se, também nas suas variantes pró-ocidentais. Já nem sequer os revivalistas nostálgicos do romantismo revolucionário terceiro-mundista têm uma perspectiva social própria sobre a história mundial. Trata-se, sim, de sub-produtos da globalização, como é o caso do regime de caudilho marxista vulgar de Chavez, na Venezuela, suportado apenas na explosão do preço do petróleo, que se alia com o islamismo anti-semita, ou o caso de correntes etno-populistas, como os Zapatistas no México, que transformaram o programa de desenvolvimento nacional, já sem objecto, numa folclórica auto-administração da miséria, com democracia das bases.
Os velhos paradigmas de esquerda de reforma e revolução no entendimento tradicional tornam-se caducos à escala da sociedade mundial, uma vez que já não existe qualquer horizonte de regulação e de transformação organizadas estatalmente. Em toda parte as instituições que restam da antiga luta de interesses sociais içam a bandeira branca da rendição. O conceito de "reforma social" transformou-se no seu exacto oposto e foi semanticamente ocupado pela contra-reforma neoliberal, que aos poucos vai reduzindo todas as conquistas sociais, sistemas de segurança social e serviços públicos ao núcleo repressivo que sempre lhes foi inerente O paradigma neoliberal já não é uma posição peculiar, mas um consenso suprapartidário, que atinge grande parte da esquerda, a qual mais não consegue que dar expressão às ideologias retrógradas de uma época passada, como oposição aparente, ou a fracas adaptações delas. Por isso a resistência se torna cada vez mais fraca; até mesmo grandes greves e incendiários movimentos de massas terminam sistematicamente em derrota e resignação.
Aparentemente o capitalismo venceu em toda a linha. E isso não só como poder exterior repressivo, mas até no interior dos próprios sujeitos. A aparente "lei natural" do mercado e a universalidade negativa da concorrência são vividas como condições inultrapassáveis da existência humana, apesar de os seus efeitos serem devastadores, humilhantes e insuportáveis. Quanto mais claro se torna que essa ordem social planetária resulta em autodestruição social e ecológica, mais obstinadamente os indivíduos se agarram às categorias e critérios dessa forma negativa de socialização que interiorizaram. Na mesma medida em que a razão burguesa se dissolve naquela barbárie para a qual Marx tinha alertado, o pensamento social recusa qualquer reflexão crítica e invoca uma "civilização" capitalista que, regra geral, só ideologicamente foi afirmada e imaginada como progresso positivo. Mesmo o poder militar da polícia mundial capitalista não soluciona problema algum, apenas agrava o caos destrutivo e a falta de perspectivas (como no Iraque desde a intervenção de 2003). O capitalismo só venceu na forma da sua própria crise, que no entanto se tornou a crise dos próprios "sujeitos actuantes" tão famosos, e por isso já não abre nenhuma via de emancipação social. A nova qualidade da crise paralisa a crítica, em vez de a mobilizar.
Esse paradoxo exige uma explicação. No espaço de língua alemã formou-se desde o fim dos anos 80 uma posição teórica que se debate com este problema. Neste contexto, procurou-se analisar criticamente a "história de esquerda" de 150 anos de marxismo e de movimento operário. O grupo "EXIT!", em torno da revista teórica com o mesmo nome, concebe-se como o resultado desses esforços e promove o seu actual desenvolvimento. "EXIT!" discute o marxismo por assim dizer a partir de dentro, para dar à teoria de Marx uma forma nova, com que possa realizar-se nos horizontes do século XXI. Por isso é necessário fazer perguntas impiedosas ao pensamento marxista. Pois o marxismo é considerado a forma teórica de crítica do capitalismo par excellence. Como pode ele cair na sua maior crise de sempre, precisamente junto com o objecto da sua crítica? Por que não encontra ele nenhuma resposta para a nova situação mundial no limiar do século XXI? Por que se apresenta todo o seu aparelho conceptual tão irremediavelmente antiquado?
Esta posição do problema não é totalmente nova, muito embora só se tenha agudizado com o colapso da União Soviética. Já desde os anos 60 estava à vista que o paradigma marxista tradicional está esgotado e não consegue acompanhar o desenvolvimento capitalista. É verdade que os movimentos de libertação nacional do Terceiro Mundo, que se legitimavam mais ou menos com o marxismo, pareciam atingir então o ápice (na realidade haviam de se extinguir logo depois); mas era evidente que o socialismo de Estado burocrático do leste começava a perder a capacidade de desenvolvimento interno e a força de atracção externa. Do mesmo modo já era possível perceber nitidamente que o movimento operário ocidental, após mais de um século de eficiência, já não tinha força e já se tornara um modelo histórico descontinuado.
Do ponto de vista da "EXIT!", a chamada nova esquerda, no contexto do movimento estudantil de 1968, ainda não estava em posição de alcançar o novo horizonte do problema e desenvolver outro paradigma de maior alcance na crítica do capitalismo. Ela limitava-se no essencial a seleccionar o material do marxismo e do anarquismo até então existentes, a "encenar" outra vez algumas variantes e subcorrentes do antigo radicalismo de esquerda, como uma espécie de teatro de fantasmas, e repetir todo o espectro das formas tradicionais de organização, no formato miniatura das seitas. A abundante literatura do marxismo dos anos 70 na maior parte não era original, não passava de uma reminiscência de comentários a uma história já morta, sob a forma de esforçados trabalhos académicos e políticos. Hoje cobre-se de pó nas bibliotecas.
A "EXIT!" demarca-se com a mesma clareza do chamado pensamento pós-moderno, que, paralelamente e em mediação com a nova esquerda, tentou suplantar o marxismo tradicional, logo através de um "desarmamento da teoria". Com o conceito pejorativo de "grande teoria", foram postas sob suspeita de totalitarismo as principais construções teóricas dos séculos XIX e XX, especialmente a do marxismo. Os supostamente totalitários conceitos do todo social, com sua diferença entre essência e aparência, tiveram que ser substituídos por um relativismo fenomenológico não essencialista; a crítica da economia política foi substituída pelo "culturalismo", a análise real pelo culto da virtualidade. O pós-modernismo tornou-se a teoria da moda dos anos 80 e 90; e toda uma geração de esquerda mais jovem cresceu com ela. Mas essa teoria não parece nada adequada a elevar a crítica do capitalismo à altura do século XXI. O "horror económico" totalitário real desacreditou completamente o culturalismo pós-moderno e a sua redução fenomenológica da teoria crítica. As mais recentes tentativas de reinterpretar à maneira pós-moderna o marxismo do movimento operário (como é o caso do pensamento "pós-operaista" de Hardt/Negri ou de John Holloway) apenas revestiram as velhas categorias com uma nomenclatura diferente e as subjectivaram de modo quase-existencialista; a "teologização da crítica" que lhes está associada implica uma auto-estetização dos movimentos, sem prespectivas de conteúdo, e a esperança no "evento", que toma o lugar dos critérios quanto aos conteúdos para uma mudança emancipatória de fundo.

"EXIT!" seguiu um caminho completamente diferente: voltou à crítica da economia política, mas não no sentido tradicional do "marxismo do movimento operário". Em vez disso, trata-se daquela dimensão da teoria de Marx que permaneceu completamente obscurecida na esquerda até hoje existente, ou que, numa minoria de reflexões teóricas avançadas, quando muito foi desterrada como arrazoamento "filosófico" abstracto, diferindo a sua eficácia prática para um futuro imaginário: ou seja, trata-se da crítica do fetichismo moderno, da crítica da produção de mercadorias como sistema, da crítica da "valorização do valor" (Marx) como "sujeito automático" (Marx) da sociedade.
Incluir na reflexão esta dimensão profunda de toda a modernidade tem como consequência deixar de ver as categorias básicas do moderno sistema produtor de mercadorias como objectos positivos ontológicos, à moda do marxismo tradicional, para submetê-las a uma crítica radical, como objectos negativos e históricos. Num primeiro momento isso vale para as categorias económicas em sentido estrito, ou seja, a racionalidade da economia empresarial, o "trabalho abstracto" (Marx) e suas formas de expressão: valor, mercadoria, dinheiro e mercado. A libertação só pode ser pensada para além destas categorias, não "dentro" ou "com" elas. O marxismo tradicional não queria suplantar as categorias do sistema produtor de mercadorias, mas apenas moderá-las "politicamente". Mas a política e suas formas de existência institucionais, Estado, democracia e nação, formam apenas o outro pólo do sistema de fetiche moderno, que é constituído pela forma jurídica dos sujeitos burgueses. As categorias económicas e político-jurídicas são as duas faces da mesma medalha. O moderno sujeito de todas as classes é um esquizo-sujeito, dividido entre homo economicus homo politicus, entre bourgeois e citoyen. A esquerda sempre quis domesticar o bourgeois através do citoyen, dirigir o mercado através do Estado, regular a economia do "trabalho abstracto" através da política, formar os sujeitos do dinheiro através da nação. Mas a questão é abolir por igual ambas as faces do fetichismo moderno, em vez de jogar uma contra a outra.
Assim se alcança uma perspectiva que já não se limita à oposição sociológica imanente entre as "classes" do trabalho assalariado, por um lado, e dos representantes do capital, por outro, mas que em vez disso toma como alvo o sistema de referência comum a essas classes. A obsoletização desta conexão formal comum manifesta-se actualmente também na queda da nova classe média, que era um produto da socialização capitalista negativa. A nostálgica referência à velha luta de classes ideologiza, em boa medida, apenas os interesses da afectação imanente da classe média em queda, que gostaria de reclamar para si, mais uma vez, o finado paradigma do "trabalho" (mesmo em versões neo-utópicas), em vez de, ao contrário do velho movimento operário, tomar como alvo o modus da socialização capitalista e pensar para além dele.
Enquanto o marxismo tradicional da luta de classes tinha problematizado apenas a apropriação jurídica superficial da mais-valia pelo capitalista, a "EXIT!" tematiza a forma social de "sujeito automático" que lhe serve de base. A mais-valia deixa de ser um objecto positivo, que uns têm e outros não têm, e que se possa exigir ou tirar. Pelo contrário, trata-se de um fim em si irracional, que está acima de todos os sujeitos actuantes. "Valorização do valor" significa uma reacoplagem cibernética do valor a si mesmo, como uma espécie de máquina social. Tal como o valor, como forma da acumulação sem fim, também o "trabalho abstracto", como seu conteúdo, se torna igualmente um fim em si irracional, indiferente a qualquer qualidade social ou material.
O marxismo tradicional fez da forma e do conteúdo do fetichismo moderno condições ontológicas e transhistóricas para a suposta conditio humana. Mas agora trata-se de historicizar essas categorias e com isso então tornar pensável a sua suplantação. A crítica do capitalismo do marxismo tradicional restringia-se à crítica do invólucro jurídico superficial da propriedade privada, enquanto a forma e o conteúdo da própria reprodução capitalista eram positivados acriticamente. Mas o valor e o "trabalho abstracto", enquanto "trabalho" em geral, enquanto "dispêndio de nervo, músculo e cérebro" (Marx), não permanecem como fundamento ontológico "depois do capitalismo", como sugere uma crítica da mais-valia reduzida à forma jurídica e à distribuição; pelo contrário, o "trabalho" e o "valor" formam a essência da mais-valia, e com isso do capital, ou do próprio "sujeito automático". O programa da crítica não deve ser a distribuição justa do valor, mas sim a sua abolição, por ser a forma irracional de uma "riqueza abstracta" (Marx) destrutiva. Não são o "ponto de vista do trabalho" nem o "orgulho pela criação de valor" que conduzem para além do capitalismo mas, pelo contrário, é a crítica radical das modernas "abstracções reais" de trabalho e valor.

Perante este pano de fundo, a abordagem teórica da "EXIT!" também se apresenta frequentemente sob o rótulo de "crítica do valor" ou "crítica do trabalho". Mas o moderno fetichismo não se esgota nesse contexto; uma crítica que se resumisse à forma do valor e à substância do trabalho seria ela própria truncada e reducionista. Trata-se também de incluir na crítica o carácter metafísico de toda a sociedade moderna e do seu "sujeito automático". O conceito de fetiche de Marx já aponta nessa direcção. O fetichismo do moderno sistema produtor de mercadorias não apenas constitui uma "analogia" com as representações religiosas, como se diz em Marx, e também não pode ser simplesmente apreendido como simples "ideologia", no sentido de um pensamento montado em "camuflagens", mas ele próprio é uma constituição metafísica e simultaneamente real da sociedade e da sua reprodução, tanto material como cultural-simbólica. A modernidade, nas suas relações, não suplantou a metafísica, como ela própria crê, mas apenas a fez descer do antigo apego religioso à transcendência para uma imanência puramente terrena; ela não é "pós-metafísica", mas sim "realmente metafísica", de uma maneira nova face às antigas formações agrárias. A religião apenas foi dissolvida como princípio de direcção celestial da reprodução e transformada em "questão de fé privada" para colocar no seu lugar o não menos metafísico princípio de direcção terrena da relação de capital. O "sujeito automático" do moderno sistema produtor de mercadorias não é a razão humana libertada, mas sim o paradoxo de uma "transcendência imanente" em processamento cego na forma da abstracção valor, o qual permanece para além das necessidades humanas e para além do mundo físico, mas que transformou, contudo, estas necessidades e este mundo em material exterior a si. Aqui está incluída uma nova qualidade de força destrutiva, que ultrapassa todas as potências autodestruidoras das anteriores formações de fetiche.
A decifração crítica da metafísica real moderna inclui uma crítica radical do iluminismo, enquanto fundamento ideológico-filosófico de todo o pensamento moderno. O iluminismo não foi só fundamentalmente repressivo, ao fornecer as idéias para o disciplinamento da humanidade no "trabalho abstracto" e para o abrangente controle dos seres humanos que lhe está associado, como Foucault demonstrou fenomenologicamente. Ele também teve participação decisiva na constituição do moderno sujeito esquizóide, ao ter elevado as formas da metafísica real à categoria de razão positiva, e ao ter apresentado a revolução capitalista como metafísica da história do "progresso".
O marxismo tradicional não foi muito mais que um apêndice do iluminismo burguês; tal como a mais-valia, ele queria reivindicar também a "herança burguesa" ideal, para dar-lhe continuidade, em vez de romper com ela. O que o marxismo "herdou" do iluminismo foi exatamente a falsa ontologização das categorias básicas da socialização capitalista. A ilusão política da esquerda consistia essencialmente em reivindicar os ideais burgueses do iluminismo contra a realidade burguesa, em vez de desvendar esses ideais como ideologia positiva desta realidade negativa. As abordagens da crítica do sujeito e do iluminismo nas teorias pós-modernas, por outro lado, não conseguiram levar a discussão para além do marxismo, porque permaneceram reduzidas ao culturalismo e não continuaram a desenvolver a crítica da economia política. Ao querer escamotear as categorias e ao deixar de lado essa dimensão decisiva como suposto "economismo", em vez de reconhecer nela a metafísica real fetichista da modernidade, a crítica pós-moderna permaneceu fenomenologicamente reduzida e presa à ontologia capitalista. Por isso, também a maioria dos pós-modernos regressou ao sujeito burguês e a uma política superficial.

A continuação do desenvolvimento da teoria de Marx, de um entendimento positivista para um entendimento radicalmente crítico das categorias sociais modernas e da sua conexão, não pode ficar-se por um entendimento universalista abstracto. Tal entendimento reproduziria ele próprio a metafísica real moderna. Trata-se, sim, de destruir a universalidade positiva da pretensão iluminista. O moderno sexismo, o racismo e o anti-semitismo estão fundamentalmente contidos no pensamento do próprio iluminismo, pois estão estruturalmente relacionados com o moderno sistema produtor de mercadorias realmente metafísico, uma vez que processam destrutivamente as suas contradições.
O "sujeito automático" não é de modo nenhum sexualmente neutro, mas tem, sim, como pressuposto essencial uma determinada relação entre sexos. Tal como a modernidade não suplantou a metafísica como relação social, mas constituiu-a de novo, também não suplantou o carácter patriarcal do "Ocidente cristão", mas reconfigurou-o e objectivou-o. A dominação patriarcal moderna não deve ser entendida como relação sociológica superficial, que estaria em contradição com o universalismo abstracto da forma da mercadoria e nela poderia ser abolida, mas constitui um momento central deste mesmo universalismo. Todos os momentos da reprodução social, da vida pessoal e das relações sociais que não são absorvidos na lógica abstracta do valor ou que apenas relutantemente e com perda do seu carácter próprio se deixam inserir na lógica abstracta do valor (cuidar das crianças, "trabalho doméstico", "trabalho amoroso e de relacionamento", funções de amortecimento socio-psíquicas etc.) foram dissociados do universo político-económico e definidos historicamente como "femininos". O capitalismo, portanto, não é somente a conexão de suas formas categoriais, mas sempre também um processo de dissociação. A relação de valor é simultaneamente uma relação de dissociação de determinados momentos da reprodução social e somente as duas juntas podem formar o conceito crítico da sociedade moderna. O valor e o seu sujeito são definidos como estruturalmente masculinos. Com o que a moderna relação entre os sexos é representada, para além de Marx, ao mesmo nível conceptual que o próprio capital, e já não é um mero apêndice subordinado.

O universalismo abstracto da modernidade revela-se assim na realidade um universalismo androcêntrico; na forma do valor e na substância do trabalho, na democracia, na política e no direito moderno, está inscrita a supremacia masculina. Ainda que as mulheres nunca tenham ficado confinadas exclusivamente à esfera da privacidade e aos momentos dissociados, mas tenham sido integradas crescentemente na esfera pública do "trabalho abstracto" e da política, sobretudo depois da segunda guerra mundial, mesmo assim a sua posição aí continuou no conjunto subordinada. A dissociação sexual vigora não só na privacidade burguesa, mas também na vida pública burguesa. Mesmo nos domínios da política e da economia foram atribuídas às mulheres funções em grande parte de amortecedor psicossocial das tensões; também aqui elas passam por "signos" cultural-simbólicos para a domesticação da "natureza". Do ponto de vista imanente-empírico significa isso que elas são em média mais mal pagas, chegam mais raramente a posições de chefia e têm de trabalhar o dobro dos homens para obter metade do reconhecimento. Ao mesmo tempo, a inclusão das mulheres na sociedade oficial da economia e da política não significa que a sua responsabilização pelas actividades e relações no espaço da privacidade tenha sido suplantada e repartida por igual entre homens e mulheres. Em vez disso as mulheres sofrem em regra uma dupla carga, pois são-lhes atribuídas simultaneamente competências no trabalho assalariado e nas tarefas domésticas da reprodução. O feminismo tirou daí a falsa consequência de simplesmente reivindicar a igualização imanente das mulheres, em vez de criticar radicalmente a relação de valor-dissociação subjacente aos fundamentos da assimetria sexual. Uma vez que o carácter androcêntrico da modernidade está inscrito na sua própria estrutura essencial, não pode ser rompido no terreno da forma universal do valor.
O universalismo abstracto da modernidade é não só androcêntrico, mas também ocidental. Tal como uma grande parte da humanidade não ocidental permaneceu marginal no sistema mundial da produção de mercadorias e não saiu do nível inferior do desenvolvimento capitalista por causa do atraso histórico, do mesmo modo também a generalização global da forma de sujeito ocidental ficou ligada a uma tendência sócio-cultural destrutiva e a uma "classificação de segunda" tanto material como simbólica.
A concorrência universal inerente ao moderno sistema produtor de mercadorias suscita nos sujeitos actuantes a necessidade de imagens do inimigo. Onde não se passa o limiar da crítica da metafísica real moderna, os sujeitos transformam as suas experiências de sofrimento em projecções sobre contra-sujeitos, que são construídos como "sub-humanos" (de cor), ou como "super-homens negativos" (judeus). As ideologias do racismo e do anti-semitismo, tal como a ideologia do sexismo, estão assim estruturalmente referidas à metafísica real moderna. O sujeito universalista é essencialmente um sujeito masculino-branco-ocidental (MBO). A generalização da forma deste sujeito MBO leva a múltiplas refracções na consciência da humanidade extra-europeia e dos migrantes, com o que surgem novas misturas de sexismo, racismo ou "etnicismo" e anti-semitismo.
Também considerando o sujeito masculino-branco-ocidental e o universalismo androcêntrico, a esquerda tradicional permaneceu no interior do horizonte da metafísica real moderna. O marxismo do movimento operário era, segundo a sua própria concepção, androcêntrico e reproduziu a dissociação sexual, tal como o "trabalho abstracto". Simultaneamente, pela sua origem, era branco e ocidental, no melhor dos casos paternalista para com os seres humanos extra-europeus e muitas vezes vulnerável aos ideologemas racistas. Acima de tudo, o marxismo tradicional permaneceu consideravelmente cego perante o perigo do anti-semitismo, porque não foi capaz de reconhecer a referência estrutural deste na metafísica real capitalista. A crítica marxista do sexismo, do racismo e do anti-semitismo não foi além do falso universalismo do iluminismo burguês; por isso ficou acanhada. E também nesta perspectiva o culturalismo pós-moderno não pôde suplantar o deficit, mas apenas agravá-lo. A crítica pós-moderna do sexismo, do racismo e do anti-semitismo, fenomenologicamente reduzida, ficou confinada ao "culto da diferença", sem dar relevo aos fundamentos sociais destas ideologias nas contradições do "sujeito automático".

Se a formação das ideologias destrutivas só pode ser entendida no contexto da metafísica real moderna, elas não se manifestam contudo de modo algum "objectivamente" e como lei quase natural. A ideologia não decorre automaticamente das formas sociais do valor, do "trabalho abstracto" e da relação entre sexos com hierarquia patriarcal, mas constitui uma elaboração negativa autónoma da consciência. A consciência relaciona-se aqui, de facto, com os seus pressupostos sociais, não porém como simples "reflexo", ao qual seria como que coagida, mas sim como resolução (decisão) negativa. Assim, os indivíduos e as instituições, enquanto portadores de ideologias, também devem ser responsabilizados pelas acções de hostilidade para com o ser humano delas resultantes. Não se é objectivamente condicionado pela ideologia (sexista, racista, anti-semita), como se tem que estar objectivamente condicionado a "ganhar dinheiro" ou a comprar mercadorias. Daí que não apenas é possível a ideologia, como também é possível a crítica da ideologia e a crítica radical da situação.
O apriori das ideologias é a assimilação afirmativa dos problemas da existência no capitalismo. As condições de vida interiorizadas à maneira capitalista não são postas em questão, mas as contradições sociais (incluindo as próprias contradições do sujeito) são repelidas para o exterior através de projecções, na senda da concorrência universal. Assim, não se trata apenas da dinâmica objectiva da auto-contradição do "sujeito automático", pela qual é determinado o desenvolvimento capitalista e as respectivas crises, mas junto com ela vêm igualmente os modos de assimilação subjectivos e ideológicos ou críticos. Apenas as duas coisas em conjunto constituem o processo social real.
A ideologia não pode parar a dinâmica objectiva do "sujeito automático", nem virá-la noutra direcção. Como momento autónomo pode, porém, co-determinar as formas factuais de desenvolvimento e por vezes até marcá-las decisivamente. Assim se constituiu a "comunidade do povo alemão" nacional-socialista, em cujo centro esteve Auschwitz, ainda que perante o pano de fundo da grande crise na primeira metade do século XX. Contudo, o nacional-socialismo e os seus crimes não foram um resultado objectivo da crise, mas um produto da vontade ideológica subjectiva dos alemães. Esta vontade manifestou-se, simultaneamente, de modo nenhum para lá da lógica do valor. Pelo contrário: a Alemanha do pós-guerra, triunfante no mercado mundial, pôde tirar proveito da modernização fordista do nacional-socialismo. Assim, a ideologia do nacional-socialismo da história real da crise e da modernização expressou a sua inconfundível marca e manifestou uma "possibilidade extrema" contida nesse desenvolvimento. Por isso a teoria crítica, hoje, só pode ser formulada como teoria crítica após Auschwitz.

A nova posição teórica da "EXIT!" seria incompleta se não pudesse explicar-se a si mesma. O que significa a exigência de determinar a própria posição histórica. Não somos mais inteligentes que os nossos antecessores na crítica do capitalismo, mas encontramo-nos numa outra situação histórica, mais avançada. Não se trata agora de proclamar uma verdade definitiva, absoluta, "descontextualizada", mas de ter em conta o novo contexto histórico e de desenvolver um novo paradigma teórico, que corresponda à época que temos pela frente.
Nesta perspectiva, o antigo movimento operário ocidental, o marxismo tradicional, a esquerda política até hoje, o naufragado "socialismo real" burocrático de Estado do leste, tal como os movimentos e regimes de "libertação nacional" do sul, todos eles ainda fazem parte da história da ascensão e imposição do moderno sistema produtor de mercadorias e da sua metafísica real. Todos estes movimentos não transcendiam a ontologia capitalista, mas reflectiam apenas a não simultaneidade histórica no interior dessa ontologia. Tratou-se essencialmente de um processo de modernização atrasada. Os "momentos inacabados" do sistema produtor de mercadorias ainda não amadurecido foram ocupados "pela esquerda"; a esquerda tornou-se o motor da própria modernização capitalista.
Neste sentido, há que entender a revolução de Outubro de certa maneira como a "revolução francesa do leste". Não se tratava da suplantação das categorias capitalistas, mas pelo contrário da sua instalação social "atrasada"; de resto com métodos de capitalismo de Estado, perfeitamente semelhantes aos do ocidente alguns séculos antes. Também os posteriores movimentos de libertação nacional do terceiro mundo seguiram este padrão. Esta interpretação não deve ser reduzida ao aspecto científico-tecnológico, no sentido de uma industrialização atrasada. Pelo contrário, tratava-se de instalar as formas sociais dum sistema produtor de mercadorias, ou seja, da substituição das obrigações pessoais pela monetarização e economificação de todas as relações, da passagem das tradições agrárias às formas burguesas do sujeito e do direito, da imposição (em vez de abolição) do "trabalho abstracto" e da dissociação sexual moderna. O horizonte emancipatório deste processo não era outro senão a "luta pelo reconhecimento" no interior da ontologia capitalista, nomeadamente o reconhecimento das regiões periféricas e dependentes como sujeitos nacionais independentes do mercado mundial.

O mesmo se aplica, por fim, ao movimento operário ocidental. Aqui tratava-se do reconhecimento não nacional, mas social, mais precisamente do reconhecimento jurídico dos trabalhadores assalariados como sujeitos formais no interior do sistema produtor de mercadorias. A cidadania oficial, até à segunda metade do século XIX limitada à burguesia proprietária, teve que ser estendida a todos os membros da sociedade; só assim o "sujeito automático" pôde subordinar e incorporar toda a reprodução social. Através da luta pela liberdade de coalizão e de reunião, pelo direito à greve, pelo direito de voto universal e igualitário etc., foi conferido aos trabalhadores assalariados o esquizo-sujeito bourgeois citoyen. Assim ficou o movimento operário com "capacidade política" e "capacidade estatal". O preço foi a interiorização do "trabalho abstracto", a completa auto-submissão ao "sujeito automático" e à sua legalidade, bem como a generalização da relação de dissociação sexual. O conceito de "socialismo" usado até hoje, em todas as suas variantes, pode ser reduzido ao "superavit jurídico" desta histórica "luta pelo reconhecimento" dentro das categorias capitalistas.
Isto não quer dizer que a limitação histórica da crítica fosse absolutamente inevitável; ela foi simplesmente fáctica. Nos conflitos sociais desde finais do século XVIII houve múltiplos momentos de tensão contra as exigências do "trabalho abstracto" e da relação de dissociação sexual; mas esta tensão foi sucessivamente resolvida na linha descendente dum desenvolvimento continuado da metafísica real moderna. O que nos dá o direito, no início do século XXI, não só a desenvolver teoricamente um novo paradigma, mas também a esperar uma mediação com a prática social? A resposta a esta questão reside no facto de a posição da "EXIT!" incluir também uma nova teoria da crise capitalista.

Todas as crises até hoje foram crises de imposição da relação de capital, que ainda tinha à sua frente um espaço de desenvolvimento histórico. Precisamente por isso, os movimentos sociais podiam ocupar positivamente cada surto de acumulação que se seguia, e não eram forçados a uma crítica categorial das formas sociais. Com a terceira revolução industrial da microelectrónica, contudo, o capital esbarra no seu limite interno absoluto predito por Marx. O "trabalho abstracto", como substância do capital, é tornado supérfluo pelo próprio processo capitalista, numa medida tal que se esvaem os mecanismos de compensação até aqui vigentes. É precisamente esta a razão porque o marxismo tradicional vive uma crise qualitativamente nova, juntamente com o objecto da sua crítica. Não se pode dar resposta ao surto global de pobreza e miséria, que vai até ao interior dos centros capitalistas, nem à queda da nova classe média, com conceitos da velha "luta de classes" do "ponto de vista do trabalho". Acrise categorial exige agora pela primeira vez uma crítica categorial, e o pensamento marxista, ele próprio limitado à ideologia da modernização, não está preparado para isso.
Crise categorial significa que já não se trata simplesmente duma crise económica conjuntural, ou duma ruptura estrutural, na passagem para um novo "modelo de acumulação". Como se vê no processo de crise da globalização, agora o limite imanente do "trabalho abstracto" torna-se também na crise da política e das formas de Estado, democracia e nação. Desfazem-se irreversivelmente bourgeois citoyen, as duas almas no peito do esquizo-sujeito. Isto inclui uma elementar crise de identidade sexual e sobretudo da masculina. O resultado é uma onda de violência sexista, mobbing contra as mulheres e mobilização de ideologias androcêntricas à escala planetária. Enquanto o "feminismo da modernização", à falta de um conceito da dissociação sexual inscrita na génese da forma moderna, se ilude com um polimento imanente da hierarquia sexual, agora, nas ideologias de crise conservadoras em expansão, "a mulher" é invocada como recurso de resolução dos problemas sem custos e como instância "maternal", que deve aparar a desagregação social, e em cujas costas esta deve ser descarregada. Do mesmo modo alastram tendências racistas, "etnicistas" e anti-semitas, como um rastilho de pólvora.
Nesta crise social mundial, desenvolver a crítica categorial do moderno sistema produtor de mercadorias e da sua metafísica real não significa para a "EXIT!" elaborar conceitos de curto prazo para vencer a crise e oferecê-los numa venda ambulante de ideias. A crítica tem que poder ser por princípio negativa e só a partir da negação dos fundamentos pode surgir uma prática alternativa. Trata-se de organizar conscientemente a utilização dos recursos e possibilidades humanos em novas instituições sociais, em vez de seguir cegamente as "leis" duma "segunda natureza" fetichista. Se no passado a crítica categorial foi uma possibilidade não cumprida, agora ela tornou-se uma necessidade de sobrevivência. Nesta nova situação histórica, ainda mais perigosa se torna a constituição de ideologias e mais necessária ainda se torna a crítica da ideologia (sem abdicar da análise da dinâmica objectiva da crise). Pois da crise fundamental da moderna relação de valor e dissociação não se segue necessariamente a libertação do fetichismo; pelo contrário, esta está entregue à acção humana. Do mesmo modo, o caminho para a barbárie e para o "afundamento colectivo" (Marx) é igualmente possível. A saída está em aberto.
A negatividade é tanto mais exigida quanto mais a crítica da ontologia moderna inclui a crítica do pensamento ontológico em geral. Não há nenhuma base ontológica positiva sobre a qual se possa construir. Tal como não há regresso ao iluminismo, aos mitos da revolução burguesa e ao "Estado dos trabalhadores", também por maioria de razão não há regresso a uma pré-modernidade idealizada. A teoria da "EXIT!" rejeita qualquer romantismo agrário, como o que grassa por exemplo em França entre a esquerda pós-situacionista, como reacção ideológica ao fim do marxismo tradicional. Tão pouco se podem preencher positivamente, como o "inteiramente outro", as actividades, qualidades físicas e atribuições cultural-simbólicas imputadas às mulheres, tudo aquilo que é pensado como complemento do "masculino". As mulheres não são seres humanos melhores e aquilo que lhes é imputado significa também uma redução forçada das possibilidades humanas, tal como a subordinação ao processo de produção capitalista.
Resta colocar a questão da relação da nova abordagem teórica da "EXIT!" com a teoria de Marx. Não se trata de "ortodoxia", nem de "revisionismo", mas de um desenvolvimento heterodoxo. Nesta perspectiva há que falar dum "duplo Marx", pois é possível demonstrar em Marx duas linhas de argumentação diferentes e contraditórias: por um lado, uma teoria da modernização positiva, que apreende o capital como desenvolvimento "necessário", ainda não concluído, a que até atribui uma "missão civilizatória"; e, por outro lado, uma teoria crítica do fetichismo moderno, portanto da conexão categorial que lhe serve de base. O movimento operário e o movimento de libertação nacional só puderam fazer alguma coisa com o primeiro, com o Marx "positivista" duma teoria da modernização ainda não concluída, no invólucro das categorias capitalistas, enquanto praticamente deixaram desaparecer o outro Marx, o crítico categorial, e na realidade nem o quiseram entender. Para a "EXIT!", pelo contrário, o importante é aproveitar precisamente esta segunda linha de argumentação de Marx e continuar a desenvolvê-la, com os conceitos de metafísica real moderna e de relação de dissociação sexual, ou seja, pensar com Marx para além de Marx.

Compreende-se por si que a nova abordagem teórica da "EXIT!" tenha provocado as mais violentas reacções de defesa do lado do marxismo tradicional remanescente, incluindo as suas variantes pós-modernas. O debate sobre "crítica do trabalho" e "crítica do valor-dissociação", inicialmente limitado ao espaço de língua alemã, estendeu-se entretanto aos países latinos. Traduções de textos importantes de autoras e autores da "EXIT!" saíram em França, Itália, Espanha e Portugal, no Brasil, no México e na Argentina, e entretanto até na China e no Japão. Tanto mais necessário se torna dar a conhecer esta nova formulação e continuação do desenvolvimento da teoria de Marx também no espaço anglo-saxónico. O grupo em torno da "EXIT!" está convencido que o novo paradigma teórico "está no ar", e que por todo o mundo também se desenvolverão independentemente abordagens e elementos desta elaboração teórica. O debate apenas está a começar, e tem que ser tão transnacional como o próprio capital, se o pensamento crítico quiser suplantar a sua paralisia.
Original Kapitalismuskritik für das 21. Jahrhundert. Mit Marx über Marx hinaus: Das theoretische Projekt der Gruppe „EXIT!" in www.exit-online.org
Março de 2007