Elogio de Robert Kurz,

proferido em 26 de Julho de 2012
no cemitério Wöhrd em Nuremberga


Cara Roswitha,
Cara Senhora Kurz,
Caros parentes,
Caras amigas e amigos de Robert,

A notícia da morte de Robert chegou-me na viagem de regresso de férias. Fiquei sem palavras. Ao horror juntou-se a raiva pelo erro médico e pelo sofrimento de Robert, pelas feridas não cicatrizadas que foram sendo sucessivamente abertas, de modo que o seu corpo ficou marcado por ferimentos e lesões. Tudo isto misturado com a tristeza pela perda do seu pensamento bem próprio e inspirador, e sobretudo pela perda de um homem tornado para mim querido e precioso – apesar dos nossos poucos encontros –, um homem cujo pensamento era para o que vive. Tanto mais penso poder imaginar o que significa a morte de Robert para aqueles que lhe estão mais próximos.

À minha mudez juntou-se a reflexão sobre a importância de Robert para mim, um teólogo católico de esquerda, e sobre o que tenho de lhe agradecer. Ele moldou como ninguém nos últimos anos a minha visão de mundo, a minha reflexão e o meu compromisso. Tive de dizer adeus – e muitas vezes dolorosamente – a padrões de pensamento ainda familiares e vejo-me desafiado a repensar mesmo as categorias teológicas. Tornou-se para mim claro que a chamada teologia moderna não atinge a profundidade da análise categorial necessária para conseguir perceber as actuais ameaças de forma adequada. Acima de tudo, ela continua presa na afirmação do iluminismo – mesmo se assume a dialéctica do iluminismo na sua reflexão – e pensa poder juntar-se a um núcleo supostamente emancipatório do pensamento iluminista.

Comungo com Robert a exasperação com o sofrimento das pessoas através de uma história que se caracteriza como história de sofrimento. O desafio apresentado pelo sofrimento não é simplesmente intemporal, mas é sobretudo um problema histórico, o problema dos sofrimentos no e sob o capitalismo. Problema que não pode ser simplesmente resolvido – e as análises de Robert tornam isso bem claro – com moral ou com boa vontade. Pelo contrário, – na formulação de Adorno – o mal reside "nas relações que condenam as pessoas à impotência e à apatia, relações que elas deveriam modificar; e não reside primariamente nas pessoas e na forma como essas relações lhes surgem" (1).

O desafio do sofrimento humano não tornou Robert moralista, mas deu-lhe que pensar. Levou-o a uma análise que lhe permitiu reconhecer o que constitui o mal da situação na história do capitalismo: a valorização do valor como fim em si mesmo irracional, e – como ele assumiu do pensamento de Roswitha – a dissociação das actividades que servem para a reprodução da vida. Valor e dissociação constituem a dominação abstracta de um sujeito automático que condena as pessoas à impotência e à apatia. É importante distinguir entre o que é entendido categorialmente como essência do capitalismo no contexto formal de valor e dissociação, de trabalho abstracto, Estado, sujeito, etc., e o que pode ser descrito como suas manifestações. As alterações no plano das manifestações não atingem o contexto formal nem, portanto, a dominação abstracta. Com o reconhecimento desta, no entanto, ficam bloqueadas as vias da facilidade e do alívio. Fica bloqueada a fuga para a imediatidade tão estafada como simplista do activismo político ou da orientação de campanhas nos movimentos sociais. Não faz sentido invocar o trabalho bom contra o trabalho alienado, o Estado contra o mercado, o sujeito contra o objecto. Um pólo não é a solução para o outro, mas parte do problema a ser resolvido.

Responder de forma moralista e activista ao desafio do sofrimento das pessoas no capitalismo parecerá concreto. Na verdade, essa resposta é abstracta num mau sentido, pois abstrai da mediação objectiva que faz sofrer as pessoas na sua pele. Insistir na mediação objectiva do sofrimento dos seres humanos no capitalismo e, portanto, na indispensabilidade da teoria é tão lúcido que pode levar a qualificar a pessoa como Lúcifer. O portador da luz é transformado em Satanás. Quem traz a luz do conhecimento a um sistema de funcionamento cego sofre rejeição, difamação e hostilidade por parte daqueles que se agarram à pretensa segurança de categorias e estratégias de acção familiares, não conseguindo assim abandonar nem mesmo as ideias ilusórias e irracionais de superação do capitalismo dentro do capitalismo.

Não é por acaso que o pensamento de Robert também foi sempre perseguido pela ignorância e hostilidade, pelo sarcasmo e zombaria, bem como por acusações de afastamento da prática e de falta de comunicação. No entanto, Robert insistiu em procurar a verdade do que precisava de ser reconhecido. Ele resistiu – para usar as palavras de Adorno – "à compulsão quase universal de confundir a comunicação do conhecido com o conhecido e, eventualmente, dar mais importância à comunicação do que ao conhecido" (2). Ele insistiu em que "o critério do verdadeiro não é sua comunicabilidade imediata a qualquer um." (3)

Resistir às inimizades e permanecer firme perante as hostilidades é sobretudo possível a pessoas no seu íntimo orientadas de maneira contemplativa – a contemplação entendida como tentativa persistente e resistente de ir até ao fundamento das relações, como expressão de vontade indomável de conhecimento teórico, ou seja, de conhecimento que tenha em vista a totalidade. Isto não é feito por amor de ganho de conhecimento privado, mas para levar o conhecimento aos outros ou, na linguagem do misticismo, contemplata aliis tradere, para levar aos outros o que foi contemplado. No interesse do conhecimento e da humanidade resta esperar que os conhecimentos que Robert nos deixou a nós e ao público possam ser apreendidos e desenvolvidos e obtenham o reconhecimento que a ele lhe foi negado muitas vezes em vida. Esperemos que ainda haja tempo de o pensamento de Robert se tornar frutífero, para pôr fim ao que ele descreveu como uma catástrofe que se está a tornar realidade.

Na teologia há um grande pressentimento de uma catástrofe iminente de desumanização e com ele a exasperação e quebra de um pensamento teológico fechado no idealismo, que mistura entre si conhecimento e sentido, que arranca do absurdo um sentido sob a coacção identitária idealista de tal modo que mesmo o sofrimento mais absurdo tem de ser declarado com sentido. J. B. Metz deu grande importância a este tema colocando no centro da sua teologia a questão de como, após a catástrofe de Auschwitz, a teologia pode continuar a ser desenvolvida, de como pode continuar a falar-se de Deus.

O horror perante o extermínio sistemático de pessoas torna-o sensível às ameaças da humanidade no presente. Ele fala do "desaparecimento do homem na modernidade ou na pós-modernidade" (4), de modo que o homem corre o risco de consentir "uma lógica evolutiva não humana, em que a história é em última instância substituída por leis de natureza económica..." (5). O que isto significa, essencialmente, tornou-se para mim claro no seu dramatismo ao encontrar aquilo que provoca a resistência mais violenta no pensamento de Robert: a teoria da crise. O que Metz designa por "uma lógica evolutiva não humana" (6), é a ‘lógica de crise’ do capitalismo que ameaça os seres humanos. As pretensas leis de natureza económica implicam aquele limite lógico interno e aquele limite ecológico externo que estão no centro da teoria da crise de Robert.

A crise do capitalismo, que actua diante dos nossos olhos cada vez mais severamente, empurra as pessoas para uma luta sem tréguas pela auto-afirmação na concorrência, em última instância para uma luta de todos contra todos pelas possibilidades que se extinguem de valorização da força de trabalho. As pessoas estão sob pressão de se valorizar constantemente ou serem excluídas como não-valorizáveis ficando no entanto ainda incluídas sob a dominação do trabalho. Robert repetidamente chamou a atenção para as estratégias bárbaras com que ameaça a gestão da crise ou que já se tornaram realidade nas regiões do globo em colapso. Sob o ditame da valorização todos os conteúdos – incluindo os do homem e do seu mundo – correm o risco de se tornar quantidades abstractas de valorização. É exactamente isto que torna o processo de valorização desprovido de conteúdo e o combina com um potencial duplo para a violência: ele visa a aniquilação do outro com a finalidade da auto-preservação a todo custo e, finalmente, a auto-aniquilação com a finalidade da execução da própria existência sem conteúdo.

Perante a destruição de seres humanos como fim em si mesmo tornada realidade em Auschwitz e perante as catástrofes actuais e iminentes, qualquer pensamento filosófico ou teológico, que pense poder afirmar pomposamente um sentido metafísico universal da história ou até apenas o sentido de uma vida puramente privada virando as costas à história de sofrimento dos seres humanos, tem de ficar sem palavras. E, no entanto, parece que a questão metafísica, como questão sobre a ultrapassagem dos limites, sobre a ultrapassagem dos limites históricos, mas também sobre a possível ultrapassagem dos limites estabelecidos com a finitude do ser humano, é uma questão impreterível. Na nossa situação histórica de ameaça para os seres humanos no e através da crise do capitalismo, não é uma simples questão sobre o sentido da história, mas uma questão sobre a possível salvação do ser humano em face da mortal ausência de perspectivas da gestão da crise capitalista.

No último evento em que pude participar na discussão com Robert o assunto era ‘o capitalismo como religião’. Robert deixou claro que com o capitalismo a transcendência já não legitima as condições sociais colocando-se acima delas, mas migrou para a imanência, precisamente para o processo de valorização do valor por amor de si mesmo. O capitalismo "engoliu, por assim dizer, a transcendência e transformou-a em sua própria e permanente transgressão." (7)

Mas então – em linha com Nietzsche – Deus não estaria morto, mas sim migrado para a imanência da valorização abstracta do valor como fim em si mesmo. Ele estaria imanente a esse mundo ‘invertido’ em que o destino dos seres humanos está ligado para a vida e para a morte à produção de mercadorias como fim em si da acumulação de capital. Ele apenas morreria com este mundo e com o ser humano que nele está a ser destruído.

Será que a distinção entre transcendência e imanência ou, na linguagem teológica, a distinção entre Deus e os ídolos como imanência absolutizada inclui uma perspectiva de salvação? Transcendência seria aquilo que não pode ser reduzido ao conceito na lógica da identidade nem pode ser instrumentalmente valorizado. A proibição de imagens em sua forma teológica e filosófica protege essa transcendência. Ela não deveria ser pensada ‘para além’ da história, mas produzindo efeito na história, como uma questão em aberto e que abre uma imanência fechada à necessidade material e somática do ser humano e assim como questão a ser transcendida. Transcendência assim entendida marca uma diferença fundamental entre o mundo como ele é e como poderia ser.

Seria uma transcendência que nem sobreeleva o mundo como ele é nem se funde com ele. As tentativas de pensar assim a transcendência não caem do céu das ideias, mas têm suas raízes na experiência histórica. Biblicamente, são constituídas pelas experiências de sofrimento histórico, que clamam pela abolição das fronteiras: da experiência do sofrimento dos escravizados no Egipto, dos deportados sob o domínio babilónico, dos oprimidos sob o sistema de dominação grego até ao Messias crucificado por Roma. A transcendência articula-se no grito pela salvação. Este grito conduz à análise do que o provoca e permite questionar as possibilidades de abolição de todas as casas de escravos na história.

A questão metafísica da transcendência não se coloca apenas em relação à questão das possibilidades de abolir as fronteiras da história. Ela surge não apenas em relação ao sofrimento actual, mas também em relação aos sofrimentos no passado, especialmente daqueles que foram vítimas das várias formas de dominação. Perante o seu destino, a questão mais urgente é saber se o 'curso das coisas’ é que a opressão e a violência triunfam sobre a vida. E se mesmo uma sociedade melhor teria que viver com o conhecimento cruel de que a felicidade é inseparável do sofrimento de todos os infelizes.

A questão metafísica coloca-se também em face de nosso próprio sofrimento perante a finitude e a morte, e hoje especialmente perante a morte de Robert. Desistir simplesmente desta questão seria correr o risco de, perante o fáctico, passar rapidamente à ordem do dia e, apesar ou por causa de todas as invocações de memória, deixarmo-nos cair no esquecimento.

Uma resposta a essas perguntas está proibida até mesmo à teologia. Também ela não tem certezas para proclamar. Mas talvez ela possa, com toda a modéstia, falar da esperança de que ainda não tenha sido dita a última palavra sobre o sofrimento dos seres humanos. Essa esperança está consciente do risco de poder enganar-se e sofrer então uma desilusão. O seu suporte não é a segurança de verdades racionais necessárias, mas uma narrativa que reflecte experiências históricas. Dela está infelizmente desaparecido Deus e o que o seu nome misterioso inclui – Eu estarei lá como salvador da escravidão e da opressão, do sofrimento e da morte.

Em tal privação mantém-se viva a questão da transcendência, a questão da abolição das fronteiras históricas e naturais. Quem sente a falta de alguma coisa não se conforma com o que existe e mantém em aberto outras possibilidades. Neste sentido sentimos a falta da libertação da sujeição ao movimento de fim em si mesmo do capital. Sentimos a falta da salvação de todos aqueles que foram mortos na dominação associada à injustiça e à violência. Sentimos a falta dos nossos mortos. Sentimos a falta de Robert e podemos talvez descobrir que justamente na dor da ausência ele está próximo e presente.

Heribert Böttcher


(1) Theodor W. Adorno, Negative Dialektik [Dialética  Negativa], in: Gesammelte Schriften, Vol. 6, Frankfurt am Main 2003, 191

(2) Ibid., 51

(3) Ibid.

(4) J.B. Metz, Memoria Passionis, Freiburg 2006, 79

(5) Ibid., 92

(6) Ibid ..

(7) Jörg Ulrich, Gott in Gesellschaft der Gesellschaft. Über die negative Selbstbehauptung des Absoluten [Deus em sociedade com a sociedade. Sobre a auto-afirmação negativa do absoluto], em: Exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft [Exit! Crise e crítica da sociedade mercadoria] 2/2005, 23-52, 32