A HISTÓRIA COMO APORIA
Teses preliminares para a
discussão em torno da historicidade das relações de fetiche
(3ª Série)
SINOPSE:
1. A abordagem da teoria da
história para além do marxismo tradicional/ 2. A problemática do conceito de
história como constructo moderno/ 3. Aporias solúveis e insolúveis/ 4. A crítica
radical da modernidade não pode deixar de ter uma teoria da história/ 5.
Dissociação e fetiche/
6. Capitalismo e Religião/
7. Sobre o conceito de relações de fetiche/
8. Metafísica, transcendência e transcendentalidade/ 9. Da divisão de épocas
ao relativismo da história/ 10. Alinhar com o processo de desmoronamento da
filosofia burguesa da história?/ 11. Que significa pensar contra si mesmo?/
12. A dialéctica da teoria da história em Adorno/ 13. Crítica do conhecimento da
teoria da dissociação e crítica do conceito de história/ 14. Teoria negativa da
história e programa de desontologização/ 15. Um novo conceito de unidade entre
continuidade e descontinuidade/ 16. Conceitos afirmativos da reprodução e
conceitos histórico-críticos da reflexão/ 17. Ruptura ontológica e “superavit
crítico [kritischer Uberschuss]”/ 18. Insuficiências e conteúdos de ideologia
alemã, reaccionários, da hermenêutica da história/ 19. Fossilização ontológica
como vingança da dialéctica/ 20. Consequências possíveis: pose
neo-existencialista, decisionismo, reformismo neo-verde.
Nota
intercalar: Esta série foi interrompida temporariamente, em parte por
circunstâncias externas e em parte pelo trabalho na Exit nº 4 (no prelo). Mas
será logicamente continuada e concluída no decurso do corrente ano, ainda que a
temática não esteja actualmente no centro das atenções. Gostaria de retomá-la
futuramente noutra forma, depois de concluída esta discussão.
8.
Metafísica, transcendência e transcendentalidade
Quando
falamos de metafísica e de “metafísica real “ torna-se obviamente necessária uma
desambiguação, principalmente porque o conceito de metafísica é muitas vezes
maltratado e há quem goste de o tagarelar irreflectidamente com ar de
importância. Em alguns discursos actuais serve para quase mistificar as relações
capitalistas, uma vez que, como determinação que permanece imprecisa, mais
obscurece que esclarece o contexto categorial da forma da sociedade. No entanto,
com Adorno, não se deve perder de vista que uma desambiguação não se faz com
meras “definições”, mas que os conceitos apenas se tornam claros no seu contexto
histórico, ou seja, nas “constelações” de que constituem um momento.
A
metafísica é geralmente considerada como um domínio específico da reflexão
conceptual (filosófica). Tal reflexão, no entanto, já está sempre num contexto
de reprodução humana, ou seja, das relações sociais e do “processo de
metabolismo com a natureza” em diferentes formações históricas. Portanto, quando
se fala de metafísica, esta não pode ser tomada por si (numa perspectiva de
“história intelectual”) como reflexão filosófica com diferentes pontos de vista,
mas deve ser considerada no contexto das respectivas relações de reprodução.
Este é um
aspecto do materialismo histórico que continua a ser indispensável para a
elaboração teórica da crítica da dissociação-valor. Em contraste com o
materialismo histórico, no entanto, aqui já não seguimos um esquema
base-superestrutura, em que um momento da reprodução, do “processo de
metabolismo com a natureza” percebido como “trabalho” se torna o princípio
fundamental dominante, a partir do qual todos os outros deverão ser derivados.
Isto em si é uma metafísica, como também veremos. A concepção que resulta da
teoria crítica da dissociação-valor de uma “história de relações de fetiche” em
vez disso parte do princípio de que existem diferentes momentos da reprodução
“igualmente originais”, ou seja, para além da respectiva forma do “processo de
metabolismo com a natureza” e com ela não absolutamente coincidentes, também
existem formas de relações sociais, formas cultural-simbólicas, formas de
reflexão e não em último lugar formas de relações de género etc. insusceptíveis
de serem reduzidas umas às outras, mas que apenas como um todo constituem uma
formação histórica específica. Na medida em que na história até hoje o que houve
foi constituições de fetiche na acepção do acima introduzido conceito de matriz
a priori, pode falar-se de “metafísicas reais” históricas surgidas em
processos contingentes; isto é, incluindo toda a reprodução, e não apenas como
reflexão conceptual e filosófica que, pelo contrário, é incorporada na
respectiva “metafísica real”. Isso significa que o conceito de metafísica em
primeiro lugar representa uma determinação da constituição de fetiche de
relações humanas de reprodução e deve ser pensado em conjunto com ela.
Neste
sentido, a teoria da história da crítica da dissociação-valor transforma o
materialismo histórico de uma hipostasiação do “processo de metabolismo com a
natureza” (“trabalho”, forças produtivas) na determinação de relações de fetiche
de acordo com uma matriz a priori mediada de diferentes maneiras por um
meio constituído metafisicamente; e nesta relação de fetiche metafísica está
incluído também o respectivo “processo de metabolismo com a natureza”. Trata-se,
portanto, não de um “idealismo” que deriva a realidade histórica de princípios
puramente espirituais ou de construções do pensamento (como pode parecer em
Gerold Wallner) ou de desenvolvimentos da “história intelectual” (também isto é
uma metafísica), mas de uma reflexão crítica das relações de reprodução
“realmente metafísicas” dos seres humanos, em cujo contexto se situam todas as
reflexões (filosóficas ou teológicas). Portanto, temos de distinguir entre
“metafísica real” subjacente (inconsciente e a priori) de relações de
fetiche e metafísica como reflexão (consciente) “sobre” a “constituição do
mundo” assim formada e “nela”. Neste sentido a reflexão da crítica da
dissociação-valor é uma reflexão explosiva, na medida em que, juntamente com a
constituição de fetiche, também a “metafísica real” de toda a história anterior
é radicalmente criticada, com o objectivo de suplantá-las.
Dito
isto, podemos agora voltar ao conceito filosófico de metafísica. Ele tem origem
no arranjo editorial das obras de Aristóteles (Corpus Aristotelicum)
feito por Andrónico de Rodes cerca do ano 70 antes da nossa era. Aí foram
reunidos certos textos de Aristóteles sob a designação de “depois da física”, o
seja, o que vem após ou “atrás” dos trabalhos sobre física (embora o termo
“física” não corresponda naturalmente ao entendimento moderno), o que em grego é
designado pela palavra “metafísica” (o próprio Aristóteles nunca usou este
termo). Visto de fora parece portanto tratar-se de uma mera designação de
técnica editorial, o que tem sido frequentemente apontado. Ora não se pode negar
que este termo, surgido quase acidentalmente por razões de técnica editorial, se
refere a um conteúdo material específico dos escritos de Aristóteles por ele
abrangidos. Pode verificar-se aí um conteúdo correspondente à ordenação feita
acidentalmente por razões de técnica editorial: não se trata apenas do que nas
“obras completas” de Aristóteles foi editado “após” os livros sobre física, mas
também de um conteúdo “após”, “atrás “, “acima” ou “além” do mundo da aparência
experiencial. Este conteúdo específico foi tratado muito antes de Aristóteles
nas reflexões teológicas e filosóficas; pela coincidência acidental do arranjo
editorial e do conteúdo dos textos correspondentes de Aristóteles, o conteúdo
deste campo de reflexão apresenta-se desde então como “metafísica”. É inútil
divagar sobre a formação da palavra; trata-se, sim, da importância do conteúdo
por ela designado.
Do que se
trata ou o que se considera como “Além” do mundo dos fenómenos experienciais?
Aristóteles fala nos escritos editados como “metafísica” de uma “filosofia
primeira”, que tem de “ir aos primeiros princípios e causas” (Metafisica,
de acordo com a tradução de Hermann Bonitz, Hamburgo, 1995, p. 6), e de facto
tendo em vista o “ser em geral”: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e
o que lhe pertence a si mesmo. Esta ciência não é idêntica a qualquer das
ciências individuais; nenhuma das outras ciências trata do ser como ser em
geral, pois elas limitam-se a uma parte do existente e estudam as determinações
que o perfazem...” (Metafisica, ob. cit., p. 61). A metafísica, portanto,
é a ciência das “primeiras causas e princípios” do “ser em geral”, a explicação
ou “justificação última” porque é que existe algo em geral, a ciência do que
“está subjacente ao mundo” a ciência do “absoluto” que apenas ele constitui o
mundo do fenómenos (constituens em contraste com constitutum) e
que é supra-temporal. A metafísica, por isso, pode ser dividida em uma “essência
do ser em geral” atemporal (ontologia), uma “essência do mundo natural”
atemporal (cosmologia filosófica da natureza) e uma “essência do Homem”
atemporal (antropologia filosófica), sendo que cosmologia e antropologia estão
contidas na ontologia geral, ou seja, elas mesmas são determinadas
ontologicamente. Em qualquer dos casos trata-se de “ciência do absoluto” e do
constituinte “como última causa”, seja ele um absoluto do “ser em geral”, um
absoluto do mundo físico ou um absoluto do mundo humano e da sua historicidade.
Esta
ciência filosófica da metafísica, como disse, liga-se agora com as relações de
reprodução humanas, e de facto em sua existência como relações de fetiche, na
medida e enquanto são relações de fetiche na acepção daquela matriz a priori
inquestionável, a qual constitui as respectivas relações sendo o respectivo
absolutum e assim metafísica real. Nesta medida, cada metafísica conceptual
constitui a expressão reflexiva (e, portanto, a afirmação ou justificação) da
respectiva metafísica real fetichista. É preciso diferenciar entre metafísica
real pré-moderna de “relações de relacionamento com Deus” (para cuja
diferenciação interna a nossa crítica do fetiche ainda não está desenvolvida) e
metafísica real moderna de relações de dissociação-valor (capitalismo). É claro
que a reflexão conceptual da ciência metafísica deve ser correspondentemente
diferente nas relações pré-modernas e modernas.
No mundo
de Aristóteles, tal como no mundo da chamada Idade Média cristã, em cada caso
determinado por “relações de relacionamento de Deus” de maneira diferente, a
metafísica refere-se em todos os aspectos fundamentalmente a um “primeiro
princípio” ou “primeira causa” que deverá estar situado “além” do mundo
fisicamente experiencial, sendo portanto determinado como “supra-sensível” ou
simplesmente “transcendente”. Por isso a metafísica é frequentemente considerada
como a “ciência do supra-sensível “ que enquanto constituinte do mundo não pode
ser imanente ao mundo (não fisicamente tangível) e que é visto como Deus ou como
mundo dos deuses (em termos cristãos: o “reino de Deus”). Aristóteles determina
este absolutum constituinte do mundo como um chamado “motor imóvel”, uma
“essência imutável” (Metafísica, ob. cit., p. 127). Ele chega a esta
conclusão porque tudo no mundo é movido por causas, não apenas em sentido
mecânico, mas também em termos de nascimento e decadência e, portanto, terá de
haver uma primeira causa em si imóvel, que é eterna e transcendente: “(Apenas) o
espaço à nossa volta do mundo dos sentidos está em constante decadência e
surgimento” (ibid., p. 81), e “o primeiro motor é ele próprio imóvel” (ibid., p.
88).
O Deus
aristotélico é, portanto, um absolutum geral e abstracto para além do
mundo : “Como Deus puro ele está completamente auto-relacionado fora do cosmos”
(Jörg Disse, Kleine Geschichte der abendländischen Metaphysik [Breve história
da metafísica ocidental], Darmstadt, 2001, p. 99). Este modo de ver também
foi acolhido na metafísica teológica cristã, embora aí tenha sofrido
modificações. Aqui basta-nos em primeiro lugar constatar as noções de “causa
primeira” ou “primeiro princípio” e a sua transcendência do mundo experiencial.
Essa transcendência é parte integrante da constituição metafísica real das
relações pré-modernas de fetiche, e com isso de dominação, enquanto “relações de
relacionamento com Deus”. Como já se viu, a reprodução como relação fetichista
de dominação está aqui mediada com intermediações pessoais, como “representações
de Deus” cuja legitimidade deriva do facto de pessoas com correspondente carga
metafísica apresentarem e representarem o “relacionamento com Deus”, ou seja,
terem de estabelecer a comunicação com a esfera da transcendência na qual a
“ordem do mundo” ou “relação com o mundo” se baseia.
Uma vez
que a “relação com o mundo” capitalista moderna tornou a transcendência
paradoxalmente imanente ao mundo como “sujeito automático”, tentando afastar
para a relação de dissociação sexual os momentos da reprodução e das relações
sociais que nele não ficam absorvidos, agora o absolutum, o “primeiro
princípio” ou “causa primeira” já não surgem como um “Além” dos fenómenos do
mundo experiencial, mas como um absolutum ele próprio contido neste mundo
e mais precisamente como um absolutum “em processo” imanente (valorização
do valor). Este absolutum enquanto valor, como se viu, também é
“supra-sensível”, não fisicamente tangível; mas, uma vez que ele se “apresenta”
imanente ao mundo na forma do valor de troca das coisas do mundo (os corpos
sensíveis das mercadorias exprimem reciprocamente a sua essência supra-sensível,
isto é, a forma natural de uma mercadoria torna-se a forma do valor da outra),
ele aparece “no” mundo e degrada as coisas do mundo em meras manifestações de
si. O dinheiro como expressão universal desta relação torna-se a coisa
imediatamente “sensível-suprassensível”, enquanto os momentos da reprodução nele
não perceptíveis e delegados na relação de dissociação sexual são determinados
como pertencentes a uma mera sensualidade inferior, que não tem a dignidade
“superior” do paradoxal absolutum sensível-suprassensível (o qual
precisamente com isso a si próprio se desmente como absolutum monista).
Assim,
por um lado, estamos confrontados com uma enorme diferença para com as “relações
de relacionamento com Deus” pré-modernas. Uma vez que a transcendência do
absolutum se tornou paradoxalmente imanente ao mundo, a si mesmo se
“representando” imediatamente nas coisas do mundo e tendo de se “representar”
sempre de novo numa escala cada vez maior num processo aparentemente
interminável, as coisas do mundo também já não podem aparecer como várias
“substâncias” em si, apenas indiretamente relacionadas com um absolutum
do Além (a “substância das substâncias” transcendente, Deus), mas têm de ser
directa e imediatamente degradadas na mera “expressão” ou “manifestação” da
substância que a si própria se coloca como absoluta do valor e com ele do
“trabalho abstracto”. Por outro lado, continua a tratar-se aqui, mesmo que agora
de outra maneira, de um absolutum apreendido como atemporal, de um
“primeiro princípio” que deve determinar a “ordem do mundo” e que agora enquanto
seu paradoxal tornar-se imanente agudiza até ao insuportável os poderes
destrutivos da “história de relações de fetiche” (metafísica real).
No plano
de abstracção do conceito de fetiche ou do conceito de “história de relações de
fetiche” é preciso portanto constatar não só a diferença perante as “relações de
relacionamento com Deus” pré-modernas, mas também o momento abstracto de
comunhão numa “metafísica real” em cada caso diferente e das correspondentemente
diferentes reflexões metafísicas (fundamentações últimas num absolutum
trans-histórico). No interior da metafísica real / metafísica pode falar-se de
uma diferença entre a transcendência pré-moderna (esfera divina supra-sensível
do Além) e a transcendentalidade moderna (“transcendência imanente” paradoxal do
valor). O conceito de “transcendental” remonta a Kant que com esta expressão
descreve a metafísica da razão formal da modernidade em que se expressa a
socialização da dissociação-valor. As “relações com o mundo” pré-modernas são
determinadas de modo transcendente, as modernas de modo transcendental.
Ora, uma
vez que na reflexão filosófica moderna a partir do iluminismo não se atingiu o
nível de abstracção do conceito de fetiche (que depois de Marx foi em grande
parte deixado cair novamente ou nem voltou a ser pensado), pôde surgir a
impressão de que a modernidade seria uma época “pós-metafísica”. O conceito de
metafísica foi então unilateralmente restringido à transcendência e ao
“supra-sensível” das “relações de relacionamento com Deus” pré-modernas,
enquanto a relação de valor moderna paradoxalmente “sensível-suprassensível”
surgia não como “metafísica em processo” (Jörg Ulrich), mas como suplantação da
metafísica em geral enquanto imanência ao mundo, metafísica que além disso foi
percebida como mero problema ideal, da história das ideias, enquanto a
referência às relações de reprodução realmente metafísicas permaneceu
completamente na sombra; por isso também o conceito de fetiche de Marx continua
a ser um livro fechado a sete chaves para o pensamento moderno pseudopós-metafísico.
Se a
metafísica filosófica da modernidade, que pretende não o ser, for agora
reconduzida à sua referência social realmente metafísica, é possível decifrá-la,
por um lado, como metafísica da abstracção do valor e portanto do “sujeito
automático” ontologizado, que aparece como metafísica da “razão” e se apresenta
eticamente como metafísica da forma jurídica (classicamente nas “críticas” de
Kant), simultaneamente dinamizada para metafísica da história do “progresso”
(sistematizada por Hegel, como se viu, como história do desenvolvimento do
“espírito do mundo”). Aqui, a ênfase é posta no momento “supra-sensível” da
transcendentalidade, enquanto o mundo sensível é degradado em manifestação do
absoluto supra-sensível tornado paradoxalmente imanente ao mundo (valor ou
valorização do valor, disfarçado de “razão pura”).
Por outro
lado o marxismo, justamente como “materialismo histórico”, desenvolveu uma
metafísica também encapotada, ontologizando por sua vez o “trabalho” abstracto
como absolutum e assim o elevando a metafísica do trabalho. “Trabalho”,
no entanto, é apenas o lado vivo-sensível abstractificado da mesma metafísica
real capitalista (a paradoxal “sensibilidade abstracta”) e, portanto, tão pouco
é “pós-metafísico”. A ele corresponde o “materialismo”, como cosmologia da
filosofia da natureza; por isso é uma metafísica materialista da mesma
constituição sensível-suprassensível em que se reflecte o cruzamento da
“supra-sensibilidade” do valor com o mundo dos sentidos por ele atingido, e onde
“o trabalho” representa o movimento de mediação como substância em processo
abstractificada. Nessa medida, a oposição entre a metafísica da “razão” e do
direito genuinamente burguesa (idealismo) e a metafísica do trabalho marxista
(materialismo) constitui uma disputa no interior da própria metafísica moderna,
no terreno da metafísica real capitalista. São as duas faces da mesma moeda.
Isso
também se reflecte na ironia da história de que o socialismo real da
“modernização atrasada” pretendeu deixar continuar em processo o “trabalho” sem
o seu outro do capital, por meio de um suposto comando sobre a forma valor não
resolvida, e teve de falhar, enquanto, inversamente, o capitalismo de crise da
terceira revolução industrial gostaria de deixar continuar em processo a
valorização na forma do “capital fictício” por sua vez sem suficiente
“substância de trabalho”, e por isso falhará também. Só a viragem crítica contra
a constituição de fetiche em si e, portanto, contra a “história de relações de
fetiche” pode romper a metafísica real das relações sociais e materiais e, com
ela, a metafísica como sua reprodução ideal.
Voltemos
agora ao raciocínio de Wallner e Cª. em que a concepção de “história de relações
de fetiche” é descartada a favor da absolutização da diferença das formações
históricas. Também isto é uma metafísica, pois aqui é a própria diferença
desconexa que é tornada um absolutum e ontologizada como antropologia
filosófica, pelo que é apropriado falar de uma metafísica da diferença, a qual,
pode já antecipar-se aqui, constitui uma característica geral da ideologia
pós-moderna (voltarei a isso com mais detalhe nos dois pontos seguintes). Isso
também tem consequências para o conceito de metafísica.
No artigo
Die Leute der Geschichte [As gentes da história] Wallner, movido pelo
zelo de hipostasiar a diferença e negar qualquer momento abrangente na história,
classificou a metafísica como que de passagem de modo ainda completamente
tradicional e à maneira bem iluminista, ou seja, como essencialmente
pré-moderna, ao contrário da modernidade (implicitamente determinada como
“pós-metafísica”). Assim Wallner, no lugar já citado sobre a constituição
religiosa da pré-modernidade, critica qualquer classificação como metafísica da
continuidade na verdade falsa e redutora do capitalismo “como religião”, pois
tais erros de classificação questionariam “se compra e venda não seriam actos de
culto, o direito, uma metafísica e o ganhar dinheiro, uma idolatria...” (EXIT!
3, p. 56). Aqui a metafísica ainda aparece numa série com “actos de culto”,
“idolatria “, etc. que, ao pretender-se que caracterize também a figura do
direito moderno, é atribuída à constituição moderna do ponto de vista de Wallner
erroneamente, quando pertenceria apenas à constituição religiosa pré-moderna.
Esta argumentação de Wallner visando negar qualquer continuidade torna-se porém
problemática no que diz respeito à determinação da modernidade como metafísica
real sui generis, que assim teria de ser realmente descartada, com o que
também o conceito marxiano de fetiche não seria mais sustentável.
Para
evitarem esse problema e poderem continuar a comportar-se “como críticos”
Wallner & Cª. agora simplesmente viraram o bico ao prego e de repente reservaram
exactamente ao contrário a metafísica já apenas para a modernidade capitalista,
devendo as constituições religiosas pré-modernas voltar a figurar absurdamente
como “não metafísicas”. O que aponta mais uma vez para a arbitrariedade e livre
escolha de um pensamento que quer a todo o custo a absolutização da diferença,
em que agora a relação é posta de pernas para o ar com uma cambalhota.
Jörg
Ulrich, no seu texto já citado várias vezes de discussão crítica com Wallner
(„Der” Mensch und die Leute und die Religion und der Kapitalismus und so weiter
[“O” ser humano e as gentes e a religião e o capitalismo e por aí fora]),
inicialmente rejeitou esta inversão do conceito. Ulrich concorda que não se pode
ficar por uma crítica ela própria ainda iluminista, que apenas acusa o
capitalismo de suplantar “incompletamente” a metafísica: “Se se pretendesse
realmente acusar a modernidade apenas de ‘não ter suplantado suficientemente’ a
metafísica, então continuaríamos ainda a mover-nos dentro da consciência que ela
tem de si mesma, uma vez que a acusação consistiria em o positivismo, que afirma
ter suplantado completamente a metafísica, não o ter feito no fundo
suficientemente, de modo que a metafísica, por assim dizer, voltou a entrar pela
porta das traseiras. Mas a constatação de que no positivismo encontra expressão
uma metafísica que ele não reconhece como tal não supõe de modo nenhum que ele a
tenha suplantado apenas incompletamente, mas sim que não a suplantou nada. A
metafísica já é sempre a metafísica toda, e a sua suplantação, se de algum modo
for possível, apenas pode ser a suplantação de toda a metafísica” (Ulrich,
ibid.).
Aqui, o
problema ainda é muito bem colocado no contexto da suplantação da metafísica,
que aponta para a continuidade de pré-modernidade e modernidade, tendo em
consideração as constituições realmente metafísicas em cada caso diferentes e as
correspondentes formas de reflexão. O argumento de Wallner revela-se como um
passe de mágica, uma vez que a sua crítica à fixação no pensamento iluminista se
refere apenas à alegada “incompletude” da suplantação da metafísica, mas não ao
momento da continuidade de constituições afinal metafísicas. Aqui seria preciso
determinar a relação entre diferença e semelhança, e precisamente no plano de
abstracção de uma “história das relações de fetiche” que inclui perfeitamente a
diferença entre as determinações metafísicas pré-modernas e modernas. É o que
Ulrich também deixa inequivocamente claro: “Ora a moderna suplantação da ‘antiga
metafísica’... não é incompleta... mas simplesmente uma suplantação metafísica
da metafísica e, portanto, não apenas ruptura, mas também continuidade” (ibid.).
Em seu
diálogo com Claus Peter Ortlieb (que será publicado na EXIT! 4) Ulrich, porém,
já lançou borda fora este ponto de vista e também a este respeito se acomoda
novamente à “absolutização da diferença” como um modo de ver suposto
completamente novo com “outros olhos”. Então de repente ele põe-se a divagar em
conformidade, sem identificar o contexto de fundamentação: “Talvez As gentes
da história pré-modernas não tivessem ou não conhecessem qualquer metafísica
no sentido em que nós hoje a imaginamos, de modo que a metafísica como forma de
dominação do geral sobre o particular teria de ser entendida também de novo como
questão especificamente moderna”(Claus Peter Ortlieb / Jörg Ulrich, Die
metaphysischen Abgründe der modernen Naturwissenschaft. Ein Dialog [Os abismos
metafísicos das ciências naturais modernas. Um diálogo]). Na realidade,
porém, trata-se de uma diferença no interior da “dominação do geral sobre o
particular”, pois nas constituições pré-modernas a dominação como transcendência
absoluta daquele “geral” (Deus, motor imóvel) era indireta, enquanto na
modernidade como parodoxal “imanência do transcendente” (transcendentalidade)
tornou-se directa.
Ulrich
tenta agora agarrar a absolutização da diferença, “assumida” contra a própria
convicção, como oposição entre “metafísica” (supostamente apenas moderna), por
um lado, e “teologia” (pré-moderna), por outro, caso em que Aristóteles figura
apenas na “teologia” “em vez de” na “metafísica” suposta puramente moderna. Mas,
de modo nenhum por acaso nem arbitrariamente, a teologia não é tratada como
expressão particular da metafísica ou como estando em ligação com ela. A este
respeito a lição de Adorno sobre Metafísica de 1965 pode ser elucidativa. Aí ele
vira-se de facto contra a tentativa usual de “meter a teologia e a metafísica...
no mesmo saco” (Theodor W. Adorno, Metafísica, Lições 1965, Frankfurt / Main
1998, p. 16), mas ao mesmo tempo faz notar a sua comunhão, dizendo “que a
metafísica também tem algo ver com a teologia, justamente na maneira como ela
procura elevar-se acima da imanência, acima do mundo da experiência” (ibid.,
p.17). Tanto quanto podemos agora diferenciar entre metafísica no sentido
filosófico e teologia como metafísica, é o mesmo problema da transcendência (ou,
na era moderna, da transcendentalidade) em versão ou modo de exposição meramente
diferente; na reflexão filosófica, em oposição à teológica, trata-se de “... que
a metafísica é a tentativa de determinar a partir de puro pensamento o absoluto
ou as estruturas constitutivas do ser; portanto, não dogmaticamente, não a
partir da revelação, e não como algo positivo que me é dado simplesmente,
nomeadamente através da revelação ou da revelação veiculada pela tradição...,
mas sim... pelo conceito” (ibid., p. 18).
Ora é
perfeitamente claro que a reflexão aristotélica do “motor imóvel” é puramente
conceptual e nessa medida metafísica filosófica, portanto de modo nenhum
teológica, ou seja, não argumenta a partir da tradição canónica nem a partir da
revelação, nem mesmo em forma mítica, e certamente não em ligação com um culto
religioso. Ulrich confunde o conceito, porque já não consegue distinguir que a
reflexão aristotélica, por um lado, acontece de facto numa constituição real
religiosa histórica de “relações de relacionamento com Deus”, não assumindo, por
outro lado, nenhuma forma teológica. Isso aponta para que já na antiguidade a
metafísica filosófica e a teologia se separam, mas no próprio terreno da
constituição religiosa das relações de reprodução. Há assim uma tensão, que
coincide com a linha de reflexão do antigo “cepticismo”: cepticismo contra o
dogma teológico ou a tradição, mas não contra a constituição de fetiche
religiosa como tal, que é sempre explicitamente reconhecida. Inversamente esta
tensão é feita valer do lado da teologia; Adorno fala de “violentas reacções
mais antigas da teologia contra a metafísica” (ibid., p. 18), ou seja, contra a
reflexão conceptual filosófica desligada da tradição ou da revelação na base da
constituição religiosa. Mas Adorno também ressalta que “finalmente a metafísica
e a teologia entenderam-se” (ibid., p. 19), em parte já na antiguidade, mas
especialmente na Idade Média cristã a partir dos Padres da Igreja. Tudo isso
aconteceu ainda no terreno das constituições religiosas. É pensamento
unidimensional e não-dialético considerar que toda a reflexão conceptual nas
constituições reais religiosas em virtude da sua constituição tem de ser “apenas
teológica” e que toda a filosofia pré-moderna é subsumida na “teologia”. A
separação absoluta feita por Ulrich entre metafísica e teologia, atribuindo-as
mecanicamente à modernidade, num caso, e às relações pré-modernas, no outro, é
completamente arbitrária e contrária aos factos. Todo o problema fica com isso
apenas obscurecido.
Ora qual
será o significado de atribuir deste modo não-conceptual a metafísica apenas à
transcendentalidade moderna, enquanto se considera que a reflexão na
pré-modernidade deve ser “só teológica”? Reservando também exclusivamente para a
modernidade a “metafísica real” que vigora na constituição reprodutiva, vai dar
exactamente na absolutização da diferença. Constituição metafísica real e
metafísica como reflexão conceptual “apenas na modernidade”, na pré-modernidade,
pelo contrário, uma constituição que sendo religiosa não pode ser “metafísica
real” e cuja reflexão deve ser “apenas teológica”. Quando Wallner no seu artigo
atribui inadvertidamente na passagem citada o conceito de metafísica à
constituição religiosa pré-moderna, ele já mostra ao mesmo tempo a que
consequências absurdas conduz a arbitrária inversão em cambalhota da relação
entre a constituição pré-moderna e a moderna.
É o que
se vê quando ele reflecte sobre o estado ou o lugar da “esfera de Deus” no
suposto entendimento pré-moderno, que apenas teria sido distorcido pela visão
moderna: “Assim o elemento religioso – mediado pelas ideias de deuses,
espíritos, demónios, fadas, anjos e que tais – nesta visão moderna é posto fora
do mundo material e levado para outro lugar (por exemplo, para o céu), que
simultaneamente é qualificado como invenção – da religião (!) – tal como os
seres que o habitam. Isto pode ser baseado no facto de as incontáveis histórias
da criação, entre si semelhantes no conteúdo até à identidade, sugerirem, como
parte integrante da visão religiosa do mundo que Deus como criador do mundo
material deve estar situado fora deste, portanto que aquilo que move o mundo e o
mantém deve estar numa dimensão exterior ao mundo. Só que
–
apesar da criação do mundo pelos deuses – a sociabilidade religiosamente
constituída viu isso de forma diferente. O mundo inteiro, incluindo os deuses,
era hermeticamente fechado e, portanto, espacialmente determinável. Sabia-se
onde estavam localizadas as entradas para o mundo inferior e as mitologias da
antiguidade até às lendas recentes do período cristão conheciam os sítios.
Tão-pouco era segredo onde os deuses moravam, até mesmo o paraíso ainda estava
assinalado nos mapas do mundo do século XIII. Assim, vemos como as chamados
ideias do além estavam perfeitamente no aquém...” (Wallner, p. 28).
Deste
modo Wallner nega com toda a seriedade a transcendência pré-moderna da “esfera
de Deus”. Transcendência deve existir apenas na forma da transcendentalidade
moderna (daí que supostamente também a metafísica deve existir apenas na
modernidade, do que Wallner inicialmente ainda não estava consciente ser
consequência da sua própria afirmação, como se viu). O “Além” é suposto ser uma
invenção projectiva da modernidade relativamente às “relações com o mundo”
pré-modernas, enquanto de facto nas constituições religiosas não haveria nada do
Além; o céu e o inferno (mundo inferior) teriam sido concebidos completamente
“do lado de cá”. Deus ou os deuses não estariam localizados fora do “mundo
material”, mas completamente imanentes ao mundo. Nas discussões sobre o novo
texto de auto-apresentação da associação EXIT!, ao tratar-se do conceito de
relações de fetiche, Petra Haarmann corroborou essa “original” declaração: As
formações religiosas, segundo Haarmann, seriam “constituídas não de modo
metafísico, mas realista “; tudo, incluindo “a esfera de Deus”, seria concebido
“de modo estritamente material” nessas formações. Mesmo no cristianismo como
religião de salvação os “contactos mentais” com a eternidade (seja lá isso o que
for) teriam sido “limitados à imanência e à intramundanidade”.
Já na
última afirmação está contido um erro grosseiro de relação lógica. Pois se, como
Haarmann disse, para as pessoas pré-modernas na constituição religiosa uma
“transcendência no sentido de ir além de si mesmo em pensamento” teria sido
considerada “impossível, blasfema, sacrílega” etc. então ela confunde a
capacidade de reflexão, os mandamentos e proibições de pensar, com o carácter da
própria constituição. Se a reflexão que transcende é considerada impossibilidade
pecaminosa, então, pelo contrário, pressupõe-se a transcendência absoluta da
“esfera de Deus”. Isso já mostra que Haarmann, Wallner e Ulrich não entenderam a
natureza da constituição de fetiche, mas para eles o pensamento consciente
“sobre” e “na” constituição (neste caso religiosa) se confunde com o carácter da
constituição como tal, a qual no entanto não é algo nascido da cabeça de quem
pensa, no sentido de uma reflexão consciente. O medo do sagrado, a unidade da
“ordem do mundo” nas “relações de relacionamentos com Deus” está dentro da
constituição real religiosa, que assenta na “estrita” transcendência (no Além)
do fundamento do mundo e só assim é possível.
As
construções de Wallner sobre a suposta “localização” física e geográfica de
Deus, do céu, do inferno / mundo inferior etc. são simplesmente ridículas. Os
contos populares sobre as “entradas para o mundo inferior” (ou, se quisermos,
para o lugar dos deuses no Olimpo) não constituem qualquer prova da imanência ao
mundo da constituição, não passando de ideias “populares” da transcendência que
no entanto vigora. Tais “entradas” poderiam quando muito ser apresentadas como
“portas” para outra dimensão, do Além. Wallner comete o anacronismo de atribuir
a essas ideias um entendimento moderno de localização terrestre. Se assim
tivesse sido “realmente”, então deveria ter havido um animado turismo para o
Além e as pessoas teriam podido encontrar-se com os deuses para um copo de
néctar e um snack de ambrosia. O mesmo anacronismo surge quando Wallner
supõe que os cartógrafos medievais teriam imaginado que se pode rumar ao paraíso
tal como para a costa do Norte de África. Toda a conversa sobre possibilidade de
localização terrena, imanência ao mundo e “materialidade estrita” evidencia uma
gritante falta de compreensão da “relação com o mundo” pré-moderna nas suas
representações simbólicas. Por maioria de razão seria um anacronismo se Wallner
quisesse, por exemplo, interpretar os deuses planetários da Mesopotâmia como
“imanentes no mundo”, porque com isso já estaria a supor um universo físico
newtoniano.
Wallner
confunde penosamente as ideias e representações “naturais” de transcendência com
a ausência desta última. O facto de o Além ser concebido como quase natural, por
exemplo no antigo Egipto e na Mesopotâmia ou na antiga religião popular, não
muda o seu carácter estritamente transcendente. Isso já decorre do facto de o
Além (geralmente dividido de modo dualista em céu e inferno / mundo inferior
etc.) ser o não-lugar, para onde vão os mortos que nunca mais regressam; ou, se
regressam, então é como espíritos, demónios etc. que já não são deste mundo, mas
representam uma perigosa irrupção da transcendência. Há também relatos de
“viagens ao Além” xamânicas e religiosas, físicas ou não-físicas, e também com
isso não está de acordo o postulado de Haarmann da absoluta impossibilidade de
“ir além de si em pensamento”; mas esse ir além é numa transcendência justamente
insusceptível de localização terrena (e, por conseguinte, um fenómeno
excepcional tão sacrílego, ou, pelo menos, tão perigoso como também lendário).
E os
mortos também não vão para o Além como corpos terrestres, mas sim como “almas”
estritamente não-materiais. Por isso a ideia “natural” de transcendência,
geralmente acompanhada de uma imagem antropomórfica dos deuses, já na
antiguidade foi objecto de crítica e zombaria. Basta aqui uma referência à
Metafísica de Aristóteles, onde se diz: “Ora poetas como Hesíodo e todos os
outros teólogos limitaram-se a pensar o que lhes parecia plausível, mas sem
nenhum respeito por nós. Porque, fazendo dos deuses princípios e fazendo surgir
tudo dos deuses, eles explicam em seguida que quem não provou néctar e ambrosia
se tornou mortal. Aparentemente essas palavras eram compreensíveis para eles
próprios, é claro, mas o que eles disseram sobre a própria aplicação destas
causas está para lá da nossa capacidade de entendimento. Porque se os deuses
tomam o néctar e a ambrosia por prazer, então eles não são por si a causa do
ser; mas se os tomam para manter o ser, como podem eles ser eternos, se ainda
precisam de alimento? Por isso não vale a pena tomar a sério o saber mítico”
(ibid., p. 53).
O “motor
imóvel” de Aristóteles é de todo estritamente imaterial e exterior ao mundo,
sendo por ele também designado explicitamente como “separado” (Metafísica, p.
126, p. 232 sg., p. 258 sg.) de qualquer materialidade. Se o desenvolvimento
dentro da constituição religiosa em geral passa por aí, tão pouco se pode dizer
numa visão grosseira que a concepção de transcendência quase natural, mas não
deste mundo, se transforma na reflexão numa concepção estritamente imaterial,
“supra-sensível”, sob pena de não poder ser mantida a transcendência necessária
para a matriz a priori da constituição real. Por isso todo o pensamento
nas constituições religiosas tende para uma divisão em uma existência material,
sensível, corporal no mundo, por um lado, e em um Além “supra-sensível”,
incorpóreo, exterior ao mundo e simultaneamente constitutivo do mundo, por
outro. Isto levou à conhecida hostilidade do pensamento relativamente ao corpo e
ao mundo nas constituições religiosas, desde os Upanishads até à teologia
cristã, aparecendo o corpo como o “túmulo da alma” (soma = sema);
e, na verdade, com um cunho mais ou menos radical (da forma mais extremista,
como é sabido, na gnose, que sonhava com a aniquilação física do mundo).
A
transcendência também é exacerbada pelo desenvolvimento da cosmologia ou
cosmogénese metafísica pré-moderna. Não está correcta a afirmação improvisada de
Wallner de que as “incontáveis” (também isto não é verdade) histórias da criação
foram feitas “semelhantes até à identidade” entre si, e que sugeririam
“falsamente” a transcendência dos deuses criadores (ele não achou necessário dar
as razões pelas quais essa interpretação deve estar errada). Por exemplo, nos
mitos da criação do antigo Egipto e da antiga Mesopotâmia (e noutros), que nos
foram transmitidos pouco claros e dificilmente compreensíveis, não se trata de
uma creatio ex nihilo, mas já existe sempre antes do criador ou
independente dele uma substância do mundo, uma sopa primordial ou água
primordial etc. e, em seguida, o mundo criado surge curiosamente por masturbação
ou por cuspo dos deuses (um simbolismo natural que provavelmente Wallner tomaria
de novo comicamente à letra e como prova de uma inerência ao mundo “estritamente
material”. A ter sido “realmente” assim, segundo Wallner, os deuses estariam
obviamente já sempre “por cima”). Na verdade esta constelação certamente que não
muda nada na transcendência do divino.
No
monoteísmo do Antigo Testamento, desenvolvido na teologia cristã, aparece então
muito antes da modernidade uma transição para a creatio ex nihilo que
impõe logicamente que a instância de criação estritamente extramundana não seja
imanente no mundo. Isso aponta agora para a tendência para estabilizar a
constituição religiosa real pela exacerbação do conceito de transcendência.
Quando se diz na religião cristã de salvação que “o mundo está em Deus”, esta
frase não é, como Wallner & Cª. aparentemente dizem, simplesmente reversível com
a afirmação de que “Deus está no mundo” ou idêntica com ela. O mundo é uma
emanação de Deus, e nesse caso está “em Deus”; mas isso pressupõe que há uma
diferença fundamental entre o mundo e Deus (como inequivocamente em Tomás de
Aquino); caso contrário, não poderia haver nenhum fundamento do mundo em Deus,
nem a correspondente “relação com o mundo”, nem qualquer constituição religiosa
real, mas apenas uma auto-criação permanente do mundo idêntico a Deus, ad
infinitum. Deus pode naturalmente actuar e mesmo “aparecer” no mundo, afinal
é o “seu” mundo. Mas, para que isso possa ser assim, tem de haver uma clara
distinção entre Deus e o mundo, caso contrário não seria o “seu” mundo, mas ele
estaria simplesmente “no” mundo, como a terra, os homens, os animais, as pedras,
etc. ou seria simplesmente idêntico ao mundo como um todo.
A
identidade de Deus com o mundo é geralmente conhecida como panteísmo ou “ateísmo
envergonhado” (monismo). Wallner & Cª. querem impingir a todas as constituições
pré-modernas uma constelação igual ou semelhante. Na realidade esta concepção
monista apareceu apenas perifericamente nos tempos antigos (como no diálogo de
Cícero Sobre a natureza dos deuses), mas de modo completamente
inconsistente e em parte apoiada pela tendência dos “cépticos”, tendo sido
substituída pela constituição cristã completamente oposta. Os momentos
panteístas na filosofia medieval, como no misticismo e no averroísmo, foram
perseguidos como heréticos. Não admira, pois um rompimento monista da
transcendência nesse sentido teria deslegitimado toda a estrutura de poder da
constituição real religiosa até às últimas consequências. Eske Bockelmann no seu
livro Im Takt des Geldes [Ao compasso do dinheiro] mostrou, de resto,
como no misticismo tardio já se revelam afloramentos da abstracção real moderna
e da sua lógica funcional.
O
primeiro panteísta consistentemente monista na história da filosofia e da
religião também foi então Baruch Espinosa (1632-1677), cuja reflexão coincide
exactamente com a “data de Bockelmann” da transformação concluída em grande
parte inconscientemente (reflexiva apenas indiretamente) para a moderna
abstracção real e lógica funcional do dinheiro. Se, portanto, a “descoberta da
imanência” se situa em Espinosa (mesmo na própria interpretação ideológica de
Antonio Negri), então trata-se da transição para a moderna e paradoxal
“transcendência imanente” ou transcendentalidade; com efeitos de longo alcance
para o iluminismo e para a metafísica materialista (como é o caso justamente
também de Negri).
Ora que
terá a ver com a “materialidade estrita” pré-moderna. (também com referência a
Bockelmann) aquilo que é invocado por Wallner & Cª? Tal refere-se simplesmente
às coisas imanentes ao mundo como respectivas “substâncias” próprias. Certamente
o leite era leite, um rabo era um rabo, e não “expressão” imanente ao mundo de
alguma outra coisa, ou seja, não era a mera manifestação da abstracção
transcendental do valor. Mas isso não significa que leite e rabo não estivessem
subordinados a um geral e abstracto. Só que este geral e abstracto era
estritamente transcendente, leite e rabo estavam igualmente “em Deus”, mas
apenas enquanto este é sua transcendência ou “superioridade ao mundo”, sendo
eles substâncias próprias no mundo. O rabo estava em Deus, mas nem por isso Deus
estava no rabo sem mais. A abstracção nominal por isso mesmo não era uma
abstracção real. Isto mudou com o aparecimento do patriarcado moderno produtor
de mercadorias. O transcendência “supra-sensível” da metafísica real da
constituição religiosa pré-moderna, no entanto, era precisamente o pressuposto
para que pudesse haver uma “materialidade estrita” de substâncias imanentes ao
mundo. Contudo essa materialidade substancial imanente ao mundo não existia só
por si, mas estava sujeita ao sistema de representação pessoal senhorial das
“relações de relacionamento com Deus” metafísicas.
Encontramos constelações muito semelhantes de imanência e transcendência, do
mundo e de Deus, por exemplo na Índia antiga, se não nos limitarmos
eurocentricamente à história ocidental. Por exemplo, Heinrich Zimmer diz na sua
obra de referência sobre a metafísica indiana do Bramanismo: “Não constituía
para a divindade nenhuma ruptura com o seu Além o facto de ela temporariamente
desempenhar um papel activo no campo de manifestação da natureza sempre em
acção. De acordo com a mitologia indiana, a descida consiste apenas no envio de
uma minúscula partícula (amsha) da substância supramundana da divindade
infinitamente acima do mundo (!)...” (Heinrich Zimmer, Philosofie und
Religion Indiens [Filosofia e religião da Índia], Frankfurt/Main 1973,
primeira edição inglesa 1951, p. 349). Da mesma forma nos Bhaktas do tantrismo :
“Eles dizem que o mundo é uma manifestação do poder e glória de Deus. Deus criou
tudo isto: o céu, as estrelas, a lua, o sol, as montanhas, os mares, os homens,
os animais. Todos eles constituem a sua glória. Ele está em nós, nos nossos
corações. Mas também está lá fora” (ibid, p. 500). Mais uma vez, o mundo está
“em Deus”, como sua emanação e influenciado pela sua “descida”; mas isso
pressupõe justamente que ele está “também fora”, é transcendente, está fora do
mundo. Só assim as diferentes substâncias no mundo podem ser tratadas como
“estritamente materiais”, como existentes cada uma por si já “em Deus”, estando
subordinadas às suas representações pessoais. É uma metafísica diferente, mas “é
uma” metafísica.
A tarefa
da teoria crítica da dissociação-valor consiste em demonstrar e destruir o
carácter de metafísica real da modernidade, contra a falsa evidência de uma
constituição “pós-metafísica” diferente das relações pré-modernas. Isso exige
uma teoria da história que evidencie a diferença entre a metafísica real
pré-moderna e a moderna, incluindo as respectivas reflexões teológicas e
filosóficas (metafísicas). Wallner & Cª. colocam o problema de pernas para o ar
e fazem simplesmente confusão conceptual e falsificação da história; eles
distorcem toda a história da religião e da filosofia na sua mania ideológica de
absolutização da diferença, invertendo simplesmente o problema da relação entre
modernidade e pré-modernidade; e na realidade de modo totalmente contrário aos
factos. A afirmação de uma estrita imanência ao mundo das constituições
pré-modernas não é o resultado de uma investigação imparcial, mas o postulado
improvisado ao qual deve ser subordinado manifestamente a posteriori e de
modo arbitrário material aparentemente a condizer, para satisfazer a vontade
apriorística ou a necessidade de promover uma política de demarcação do conceito
de “história de relações de fetiche”. É como mudar o nome dos Himalaias para
Pacífico, devendo o Pacífico a partir de agora chamar-se Himalaias e exigindo-se
ao mundo que se desfaça em reverência perante tal originalidade. Quem doravante
ainda usar os nomes antigos pensa de modo “tradicional”. Infelizmente, no caso
desta reinterpretação e deslocação conceptual, trata-se apenas de um grosseiro
abuso teórico e histórico. Como já relativamente à relação histórica geral entre
capitalismo e religião, também agora relativamente ao conceito de metafísica e
ao problema da transcendência que lhe estão associados Ulrich não abriu qualquer
“terceiro olho”. A musa do pensamento unilateralizado e absolutizado da
diferença revela-se como a “mãe de todas as confusões”; o seu efeito
“inspirador” é mais parecido com o da aguardente de batata destilada
espontaneamente, cujo consumo não traz clarividência, mas pode obrigar a chamar
o cão-guia.
Mas o
absurdo tem método. Pois a inversão do problema da metafísica não só leva a
total confusão conceptual, mas também implica uma possível reversão da intenção
crítica. Nomeadamente, se a constituição religiosa já não representa qualquer
relação de fetiche, devendo ser considerada “puramente imanente ao mundo”,
“estritamente material” etc. (e a modernidade como tendo apenas “projectado a
sua própria miséria metafísica na pré-modernidade”, como Haarmann afirmou),
então ela também já não cai sob a crítica meta-histórica no contexto da nossa
actual crítica radical do capitalismo, mas torna-se já quase uma projecção
positiva; poder-se-ia obter algo dela. Ela ameaça tornar-se num “ainda não” em
termos de utopia retrógrada; pois é considerada deste ponto de vista como ainda
não acometida pelos males da metafísica real que só são atribuídos à
modernidade. Mas a diferente constituição metafísica real das sociedades
pré-modernas causou à sua maneira própria brutais coerções, fricções, relações
de poder, guerras, miséria e assim por diante, justamente porque de maneira
nenhuma assentava numa “materialidade estrita” no sentido de reprodução
autodeterminada em conjunto, mas sim numa determinação metafísica da
transcendência.
O
atrevimento de criticar o capitalismo porque ele também seria uma religião é de
muito curto alcance e permanece preso no pensamento iluminista. Mas a reversão
do problema da metafísica por Haarmann, Ulrich e Wallner também implica a este
respeito uma simples inversão: a saber, o atrevimento de criticá-lo agora
porventura ao contrário, por ele já não ser uma religião, cuja constituição
teria sido de modo tão maravilhoso “estritamente material” e supostamente dando
às coisas do mundo o que lhes é devido, quando na verdade estas foram aí
simplesmente submetidas a uma determinação metafísica diferente. Ulrich e
Haarmann demarcam-se profilaticamente desta interpretação óbvia de modo
puramente superficial, afirmando que não devem “ser invocados ‘os bons velhos
tempos’ à maneira contra-iluminista” (Haarmann nos seus textos do workshop
sobre o conceito de paz entretanto publicados na homepage do grupo saído
da Exit!) e que é preciso “precaver-se… contra a idealização ingénua das
relações pré-modernas” (Ulrich, no mesmo local, no comentário a um discurso do
Papa). Mas tais declarações não passam de formulações álibi, que de modo nenhum
são abrangidas pelo desenvolvimento imanente da argumentação, revelando apenas
que foi aqui sentida uma incerteza a que é preciso dar cobertura.
O que já
se viu em Wallner, ao esconder o carácter das relações de fetiche (mesmo
pré-modernas) como relações de dominação, torna-se aqui ainda mais claro: o
constructo da metafísica da diferença de uma imanência ao mundo pré-moderna
“estritamente material” constitui um declínio do potencial crítico da reflexão
da teoria da dissociação-valor que se pretende transplantar para um sistema de
referência diferente, na verdade incompatível. A rejeição do conceito de
“história de relações de fetiche” é apenas um veículo para a ruptura fundamental
com a elaboração teórica da crítica da dissociação-valor em geral.
9. Da
divisão de épocas ao relativismo da história
Chegamos
agora ao último ponto da suposta “avaliação” de Wallner, ou seja, a divisão de
épocas. A partir da determinação redutora e francamente errada como se viu do
conceito de fetiche feita por Wallner, segue-se para ele uma divisão em idade
mágica, idade religiosa e idade moderna ou “materialista”. Esta divisão de
épocas, imputada ao conceito de “história de relações de fetiche”, não saiu da
cabeça do próprio Wallner; veio do antropólogo J. G. Frazer (1854-1941), que a
formulou na sua famosa obra Der Goldene Zweig [O ramo de ouro; original:
The Golden Bough] (1928). Está a acontecer aqui com Wallner o mesmo que com
o autor da Krisis residual Ernst Lohoff que notoriamente omite as suas
referências. Embora o trabalho de Frazer trate material bastante interessante
obtido a partir de pesquisa de campo, a sua grelha de interpretação segue um
evolucionismo superficial na linha positivista de Comte e Spencer (um esquema
semelhante de evolução encontra-se de resto em Freud em Totem und Tabu [Totem
e tabu] e também pode ser atribuído como tal ao pensamento positivista da
evolução). Althusser chamou oportunamente e com razão a este evolucionismo
“hegelianismo para pobres”. Wallner ainda enriquece este constructo com alguns
pedaços de materialismo histórico vulgarizado, por exemplo sobre a suposta
importância da “sedentarização” para a passagem à “fase religiosa” (Exit 3, p.
36 e sg.)
Trata-se
no seu conjunto de uma classificação esquemática de base positivista, de uma
espécie de zoologia evolucionista da história, com que Wallner se limita a
caracterizar os seus próprios preconceitos (talvez também baseados na biologia
evolucionista). Tal como aconteceu com o conceito de dissociação, por ele
apresentado de modo completamente deturpado e enquadrado num esquema histórico,
ele executa em seguida uma reviravolta, “refutando” então os seus próprios
preconceitos e acreditando ter assim atingido o conceito de “história de
relações fetiche”. Mas é duvidoso que ele tenha verdadeiramente abandonado o
evolucionismo positivista e esquematicamente classificador e que este não esteja
antes de volta num entendimento supostamente “mais avançado”. De qualquer modo,
definitivamente, a “divisão de épocas” de Wallner não tem nada a ver com o
conceito de “história de relações de fetiche”. Esta abordagem representa uma
abstracção necessária da teoria da história que deve passar primeiro através do
material histórico e não pode assumir quaisquer hipóteses arbitrárias apressadas
independentemente dele, nem certamente uma divisão de épocas abrangente à
maneira das teorias positivistas da evolução ou do “materialismo histórico”. Até
agora apenas foram trabalhados alguns conceitos básicos e se começou a elaborar
uma diferenciação histórica entre constituição (religiosa) pré-moderna e
constituição moderna como metafísicas reais diferentes. Wallner “refuta” (e
mesmo assim sem razões suficientes) mais uma vez apenas a sua própria suposição
que ninguém tinha formulado senão ele.
Da mesma
forma leviana contorna Wallner o problema das transições de uma formação
histórica para outra e em especial o processo de constituição efectiva da
própria modernidade. Assim ele supõe para a anterior constituição feudal-cristã
uma dinâmica própria e de crise quase-económica, como analogia imaginada com o
capitalismo. Pressupõe assim implicitamente uma socialização moderna de modo
anacrónico, pois só nesta se pode chegar a uma dinâmica de crise
“economicamente” mediada. Nas sociedades pré-modernas Wallner postula neste
sentido um suposto “alimento” dos orçamentos familiares (da antiguidade e da
Idade Média) por meio da expansão militar e da cobrança de tributos em espécie.
Estas constituições reais anteriores assentariam portanto numa espécie de
acumulação de riqueza tal e qual como o capitalismo, apenas na forma de bens
naturais (roubados). O fim teria vindo através de uma “barreira exterior” desta
acumulação real natural: “Esta repetida acumulação de riqueza material só foi
possível enquanto houve a possibilidade de estender cada vez mais as fronteiras
do império da ‘economia’ dos orçamentos familiares. Uma vez encontrado um
vencedor neste jogo de pirâmide invertida, ou restando alguns impérios – os
impérios cristão, islâmico e asiático – e entre eles nada mais para submeter, o
desenvolvimento (sic!) anterior tinha de cessar... Um mundo cujos orçamentos
familiares se tenham esgotado, porque já não há mais qualquer exterior a cujas
custas eles pudessem obter a sua alimentação, consuma uma viragem mental (sic!),
pressupondo e localizando agora a riqueza no seu interior...” (Die
Leute der Geschichte [As gentes da história],
Exit 3, p. 42 sg.)
Este
constructo abusa do material histórico sob diversos pontos de vista. Assim, a
riqueza dos tributos em espécie ou a sua distribuição não estava relacionada de
modo nenhum com “os” orçamentos familiares em geral, mas apenas com os centros
do poder e nestes com determinadas representações; abstraindo de situações
específicas no fim do império romano e nestas mais uma vez apenas no caso de
certas distribuições de cereais à plebe. A maior parte da reprodução,
especialmente na constituição medieval cristã, tinha lugar no interior de
estruturas de dominação e em contextos locais ou regionais (muito diferentes),
não enquanto expansão externa. Em geral, as trocas de reprodução material em
grandes espaços estavam ligadas apenas em redes finas e de malha larga; as
estruturas de dominação das “representações de Deus” não representavam qualquer
socialização, mas assentavam nas relações de reprodução de modo relativamente
solto.
As
contribuições internas em natureza foram em regra decisivas, não os tributos
exteriores (as cruzadas, por exemplo, ou mesmo a colonização medieval do Oriente
contribuíram de facto para o expansionismo europeu muito posterior, mas não
seguiram uma dinâmica “económica” socialmente constituída e também não chegaram
a constituir relações tributárias exteriores de longo prazo como nos impérios
antigos). Os “orçamentos familiares” na sua totalidade não foram “alimentados”
exteriormente, pelo contrário, eles próprios alimentaram a estrutura de poder
das “representações de Deus” através da sua produção agrária. Assim, a riqueza
nessas situações já estava sempre sobretudo “no seu interior”, tendo a expansão
economicamente mediada começado apenas com o mercado mundial capitalista, como
Marx e Engels descrevem eloquentemente no Manifesto Comunista. O “dentro”
do capitalismo é o seu próprio espaço especificamente formado, o qual no entanto
já é sempre o mundo inteiro virtualmente e como tal se vai tornando
gradualmente. Wallner, não conseguindo determinar conceptualmente o problema das
“relações internas” e das “relações externas” específicas de cada formação,
supõe uma referência mundial “económica” pré-moderna para a modernidade e uma
moderna para a pré-modernidade. Mas uma vez que antes do capitalismo não havia
qualquer dinâmica economicamente mediada, também não havia qualquer
“desenvolvimento” no sentido de acumulação nem o respectivo limite, o que por
sinal o próprio Wallner sabe algumas páginas antes, quando diz sobre o
entendimento dos seres humanos pré-modernos: “... (não) o desenvolvimento, mas a
continuidade constituía o sentido, o propósito e o objectivo do seu esforço
social” (ibid., p. 23).
As
inconsistências continuam quando Wallner se põe a especular sobre o
“esgotamento” da lógica de acumulação em natureza da pré-modernidade uma vez
consumada a “divisão do mundo”. O caso foi exactamente o contrário no final da
Idade Média, quando se abriram espaços quase incomensuráveis de expansão através
das viagens de descobrimento e da colonização das Américas. Havia uma quantidade
de “exterior” que ainda nem podia ser ocupada; cerca de metade do mundo. Mas a
colonização seguiu já uma lógica diferente, a da “riqueza abstracta” (Marx),
inicialmente sob a forma da fome de ouro absolutista; um novo impulso, que em
nada resultou do esgotamento quase-económico da “alimentação” natural
pré-moderna através da expansão. O mundo da constituição religiosa nunca seguiu
uma dinâmica económica; Wallner aplica aqui o critério do materialismo histórico
vulgar, que ontologiza a “economia” como força motriz da história. O que não o
impede de voltar a cair simultaneamente no erro oposto, caracterizando a
transformação principalmente como uma “viragem mental”, um acto consciente,
quando se trata de processos de transformação histórico-sociais em que as
“viragens mentais” representavam apenas um momento e em que de resto “a
economia” em geral apenas começava a surgir.
Wallner,
na realidade, precisa do seu constructo, que mesmo em termos de teoria da
história cai num anacronismo teórico e no qual ele hipostasia certos processos
de expansão de “impérios” pré-modernos numa dinâmica de acumulação natural,
apenas para os seus objectivos ideológicos. A metafísica da diferença é
estendida ao problema da transformação da constituição pré-moderna na moderna.
Pretende-se que esta terá ocorrido na forma de uma súbita e abrupta “ruptura”,
que só pode ser explicada por uma (anacrónica) dinâmica de crise pré-moderna.
Wallner toma esta abrupta “ruptura” por uma verdade universal, afirmando que
“... o fim de cada mundo antigo chegou rapidamente e como colapso sobre as
pessoas, os sucessores encontraram também rapidamente pronta uma nova explicação
do mundo, uma nova visão sobre eles mesmos” (ibid., p. 54 sg.) Diz-se que
“sempre” terá sido assim no final de uma formação histórica. O limite interno
absoluto da acumulação do capital, muitas vezes referido como “tendência para o
colapso” do capitalismo, é estendido para trás como “limite externo”
analogamente absoluto da constituição pré-moderna, portanto carregado de
filosofia da história – e isto vindo de um desprezador de toda a filosofia da
história (sob a qual ele gostaria de subsumir pejorativamente o conceito de
“história de relações de fetiche”). Um autogolo clássico.
Infelizmente Wallner não nos diz tão exactamente quando terá então ocorrido esta
rápida “ruptura” entre a pré-modernidade e a modernidade. Por um lado, no seu
contexto de discussão é por vezes procurada a “data de Bockelmann” (século
XVII). Por outro lado, ele próprio atribui sem rodeios a Luis XIV claramente a
história pré-moderna de uma “alimentação” natural: “‘L 'état c'est moi'
proclamou um dos reis desta época já então no ponto máximo do seu declínio. Se
tivermos em mente que état inclui tudo – o Estado, as condições, o
estatuto, os meios de pagamento etc. – percebemos que Luis XIV se identifica com
esta unidade e a incorpora numa medida que nunca mais podemos perceber e cuja
amplitude nunca podemos chegar a compreender. Esses tempos já lá vão” (ibid, p.
42).
A
atribuição de Wallner constitui um erro de principiante que não passaria em
qualquer seminário de iniciação à história. Luís XIV já não é uma “representação
de Deus” pessoal na acepção da constituição religiosa pré-moderna, pelo
contrário, o seu regime já pertence à história da modernização, como todo o
absolutismo. Por isso ele também quase coincide com a “data de Bockelmann” e com
a data de Espinosa. Bockelmann comprime a mudança para a lógica funcional do
dinheiro ao ritmo do compasso na década de trinta do século XVII, Espinosa viveu
1632 a 1677, Luis XIV de 1643 a 1715. O absolutismo, com a eliminação dos
poderes intermédios pré-modernos, destruiu justamente a estrutura de dominação
das “representações de Deus”; o seu “direito divino” constituiu uma
transformação destas no poder objectivado moderno, e o “Rei Sol”, como
warlord [em inglês no original: senhor da guerra] real no contexto da
revolução militar protomoderna, tinha mais em comum com um “maximo leader”
das ditaduras de imposição do capitalismo no século XX do que com um faraó, um
imperador romano ou um imperador medieval.
Se
Bockelmann constata uma “mudança” no século XVII, e justamente uma mudança
concluída de modo inconsciente, isto não está em contradição com um momento de
continuidade do desenvolvimento ou com um conceito de processos de
transformação. Pelo contrário, mudanças ou “rupturas” pressupõem a continuidade
de transformações. A história das transições contingentes de uma constituição
histórica de fetiche para outra inclui sempre uma dialéctica de continuidade e
descontinuidade ou “ruptura”. A continuidade é tão pouco absoluta como a
descontinuidade; nem há um continuum puramente determinista, nem uma
descontinuidade puramente contingente. Nos limites de uma formação ou
constituição de fetiche e no intermúndio entre esta e uma nova, diferente (ou
até mesmo no rompimento das relações de fetiche em geral) abrem-se espaços de
contingência. Mas essa contingência, em primeiro lugar, ainda tem uma história
irreversível já pressuposta; e, em segundo lugar, cada acção de longo alcance no
espaço histórico aberto já representa de novo uma fixação ou uma mudança de
linha.
Wallner
ignora esta dialéctica e gostaria de a dissolver de novo unilateralmente na
absolutidade da “ruptura”. Mas com isso ele embrulha-se na historicidade real,
que não se harmoniza com tal dissolução. O lapso embaraçoso com a classificação
de Luis XIV é apenas um erro particularmente grosseiro neste contexto. Na
realidade, o capitalismo teve mesmo uma longa série de processos de
transformação antes que pudesse sequer começar a processar “sobre os seus
próprios fundamentos”. Processos que incluem a revolução militar protomoderna, o
protestantismo, o surgimento do absolutismo, o iluminismo, etc. e entre eles as
respectivas rupturas e abalos catastróficos que acompanharam o processo de
transformação. Portanto, não há uma irrupção “repentina” do capitalismo, nem tão
pouco uma continuidade evolutiva linear do seu “surgir”. É preciso voltar mais
tarde muitas vezes à discussão mais aprofundada do conceito de “história de
relações de fetiche”, baseada no problema da contingência, continuidade e
ruptura. A redução que Wallner faz da transição de uma constituição para outra
como ruptura súbita falha completamente esta problemática. Quando é que ocorreu
então esta “ruptura”? Na realidade, ela não ocorreu como Wallner afirma, mas num
processo de transformação de vários séculos, do século XV até ao início do
século XIX, com uma relação dialéctica de continuidades e rupturas.
Wallner
assim, como se vê, não nega só o momento de continuidade de toda a história
anterior no plano de abstracção do conceito de relações de fetiche. Também nega
o momento de continuidade no interior da transição contingente de uma
constituição de fetiche para outra e especialmente da constituição pré-moderna
para a moderna. Como se pretende que as formações históricas se enfileirem
absolutamente diferentes e sem qualquer ligação, assim também cada nova
constituição há-de cair subitamente do céu sem qualquer transformação. A
metafísica da diferença é completada com a metafísica da contingência, da
descontinuidade e da ruptura. Wallner refere expressamente esta pura ideologia
como “premissa” da sua abordagem: “Não deve existir qualquer transição histórica
em que uma época evolua para a próxima, pelo contrário, devem ser salientadas as
fronteiras distintas entre duas épocas, o colapso de uma e a completa novidade
da outra que entra no mundo (sic!) sem percurso prévio” (Exit 3, p. 35).
Também
neste ponto mais uma vez se apresenta curta a consciência teórica há muito
enfraquecida de Jörg Ulrich. Assim ele pergunta: “Continuidade ou ruptura, ou
unidade de continuidade e ruptura? Wallner optou claramente por uma ruptura sem
continuidade” (Jörg Ulrich, „Der” Mensch und die Leute und die Religion und
der Kapitalismus und so weiter [“O” ser humano e as gentes e a religião e o
capitalismo e por aí fora]). Perante isto, Ulrich afirma com toda a razão:
“A continuidade, na minha opinião, já reside no conceito e na teoria da ruptura.
Pois o que haveria de ser uma ruptura senão uma ruptura dentro de uma
continuidade? Uma ruptura pressupõe que há algo que é rompido – e isto é
precisamente a continuidade. Não há ruptura sem rompido” (ibid.). Mas, assim
como no problema da relação entre capitalismo e religião e no problema da
metafísica, também no problema da relação entre continuidade e ruptura Ulrich
manifesta, no breve prefácio ao seu texto de discussão escrito posteriormente,
apenas a capitulação teórica incondicional – sem qualquer fundamentação
argumentativa nem esclarecimento conceptual, tal como no caso das outras
questões: “A teoria das rupturas e desastres históricos”, diz ele lapidarmente,
“abre uma perspectiva que tem de ser designada por nada menos que fascinante”
(ibid., prefácio). A questão que permanece é onde está realmente o “fascínio”
quando a argumentação de Wallner é tão deficiente, confusa e insegura que isso
não pode passar em claro. A resposta, provavelmente, só a musa do desarmamento
teórico a conhece.
Depois de
teoricamente mais ter tropeçado nos próprios pés do que ter prosseguido, Wallner
ainda contrapõe condescendentemente ao conceito de “história de relações de
fetiche”, a partir de uma “superioridade” imaginada, um testemunho
simultaneamente paternalista e pretensamente aniquilador: “Ora esta tentativa
apresenta-se como insuficiente e a running gag [em inglês no original:
piada continuada] da crítica do valor fundamental, que consiste em considerar a
história da humanidade como história de relações de fetiche, será dissolvida na
continuação da teoria da dissociação-valor e terá de desaparecer dela” (Exit 3,
p. 61 sg.) É exactamente isso que não vai acontecer com certeza, porque Wallner
apenas “refutou” sempre o seu próprio espantalho e os próprios preconceitos nele
contidos. A questão agora, no entanto, é onde é que ele próprio foi parar.
Como já
referi no início da minha polémica, Wallner gostaria de fingir que conseguiu
ultrapassar o problema do carácter aporético de qualquer reflexão sobre a teoria
da história. O critério pelo qual ele rejeita o conceito de “história de
relações de fetiche” e imagina ter ultrapassado a moderna filosofia da história
em geral é simples demais para poder ser verdade: Ele age como se pudesse
assumir o ponto de vista autêntico dos tempos passados ou, se isso não funcionar
(como ele sabe muito bem), como se pudesse fazer jus a essa autenticidade
passada, sem ter de ver a história com os olhos da crítica que está
indissoluvelmente ligada à crítica do capitalismo e a partir desta incluir
também na crítica as formações anteriores num certo nível de abstracção, não
negando o carácter diferente de cada uma. Wallner, pelo contrário, nega a visão
crítica das formações pré-modernas e assim a explicação dada pela teoria da
história em geral: “Supomos (a) explicação, a fim de ter algo que faça ligação,
que nos dispense do procedimento hermenêutico...” (ibid., p. 62). Contra a
“explicação” da teoria da história a partir de um ponto de vista superior
(relações de fetiche), que ele atribui sem mais à filosofia teleológica da
história, Wallner coloca portanto a hermenêutica da história de uma pretensa
“empatia” com a autenticidade de formas de consciência passadas autónomas.
Assim,
ele postula para as formações pré-modernas um critério de reflexão que não é
critério nenhum: “A nossa questão, portanto, é o que distingue este mundo do
nosso, como ele se via a si mesmo, como ele se abre para nós quando tomamos a
sério as suas notícias” (Exit 3, p. 29). O critério de tomar qualquer coisa “a
sério” por princípio é já por si acrítico e a-histórico; de resto também em
termos dos próprios mundos passados, pois também nestes nem tudo era tomado “a
sério”, caso contrário não teria havido lutas de interpretação, nem provas de
mentiras, falsificações, etc. O critério de Wallner equivale a um positivismo
vulgar da percepção, e ainda por cima particularmente ingénuo (pelo menos caindo
na ingenuidade da aparência), que naturalmente continua filtrado pela
modernidade e não se aproxima nem um milímetro da autenticidade das formas
anteriores de consciência. De resto ele também faz injustiça à hermenêutica da
história, que mesmo na sua condicionalidade ideológica não exige nenhum “levar a
sério” positivista (no próximo ponto abordarei o significado ideológico da
hermenêutica da história na filosofia burguesa da história e no final entrarei
novamente na crítica detalhada deste “modo de proceder”).
Wallner
pensa que é capaz de fazer valer a “visão” da humanidade passada em falsa
imediatidade contra a visão moderna em geral (incluindo a nossa visão
radicalmente crítica no final da modernidade): “Assim nós distinguimos entre a
antiguidade romana e a Idade Média germânica, enquanto nesta distinção papas,
reis e imperadores não nos vêm à cabeça no mesmo sentido que cavaleiros ou
camponeses, para já não falar de servos e escravos” (ibid., p. 22). Ele
considera que constitui uma objecção o facto de “que uma testemunha da Idade
Média europeia seguramente não iria entender o que queremos dizer com a
diferença entre a antiguidade e o feudalismo” (ibid.). E significativamente dá a
entender: “Devemos... ter sempre em mente que os nossos pontos de vista sobre
Roma são fundamentalmente diferentes dos pontos de vista de Roma sobre si mesma”
(Wie es mit den Leuten der Geschichte weitergeht [Como prossegue a história
com as gentes], ibid). Wallner age como se fosse “realmente” inadmissível
olhar para a história de forma diferente da dos olhos das respectivas
“testemunhas”; ele defende num meta-plano uma espécie de “história de baixo”.
Isto já num sentido temporal bastante banal é tolo, porque assim também não
deveríamos falar vendo a partir de hoje, por exemplo, relativamente ao ano de
1629, da Guerra dos Trinta Anos, porque as “testemunhas” nesse ano não poderiam
estar conscientes de que se tratava disso. E, é claro, a Idade Média não poderia
ter qualquer noção de si como Idade Média, caso contrário o futuro teria de ser
já conhecido. Mesmo se nós criticamos os conceitos de época herdados do
iluminismo e os modificamos de acordo com a nossa abordagem crítica, seria não
só impossível, mas também disparatado reproduzir “para nós” a “consciência da
época” de cada um dos tempos passados enquanto válida “para eles”.
Mas é
claro que não se trata apenas de um problema de classificação do tempo, mas
sobretudo da abordagem da teoria da história e dos seus conceitos. Obviamente
que Wallner gostaria de posicionar o seu positivismo do “levar a sério” contra o
conceito de “história de relações de fetiche”. O argumento seria que nenhum
cônsul, imperador, papa, legionário, agricultor, escravo etc. da antiguidade ou
da Idade Média poderia fazer fosse o que fosse com este conceito, porque ele foi
formulado precisamente a partir da localização histórica específica da crise no
final da modernidade. Wallner ignora aqui propositadamente que o mesmo se aplica
em perfeita igualdade ao seu contra-conceito de absolutização da diferença e da
contingência históricas, uma história de puras descontinuidades e “rupturas”
puras. Com ela os imperadores, os papas, os camponeses etc. teriam ficado
igualmente estranhos, porque tal pensamento também seria totalmente incompatível
com a sua “relação com o mundo”.
Na
realidade não se trata aqui de pôr em debate a autenticidade das formações
passadas e da sua consciência de si mesmas perante uma reflexão da teoria da
história. É apenas um truque com o qual Wallner gostaria de imunizar o seu
próprio entendimento bem actual da história, sem ter de argumentar no próprio
plano da teoria da história. A oposição é entre o conceito de uma “história de
relações de fetiche” que inclui uma dialéctica de diferença e semelhança,
continuidade e descontinuidade/ruptura, por um lado, e o conceito de uma
história de diferenças, descontinuidades e rupturas absolutas que nega essa
dialéctica, por outro.
Se
tomarmos agora como critério a medida em que estes dois conceitos opostos
satisfazem o “interesse condutor do conhecimento”, a importância ou valorização
da história no sentido da crítica radical do ponto de vista da actual situação
de crise e com o objectivo de suplantar o capitalismo, é fácil de ver que o
conceito de Wallner de modo algum pode satisfazer este critério. A absolutização
da diferença rasga qualquer conexão entre a crítica de hoje e o estudo das
formações pré-modernas, que então, sob o pretexto de uma “abordagem
hermenêutica”, apenas pode reduzir-se a levar por diante pedaços de saber sobre
o passado à boa maneira da burguesia culta, a uma “erudição” vazia sem pretensão
crítica. Esta argumentação representa um “desenvolvimento” da teoria da
dissociação-valor mais ou menos na mesma medida em que a pintura de aguarela
como hobby de esposas frustradas de notabilidades de província pertence à
vanguarda artística.
A
absolutização da descontinuidade e da ruptura faz desaparecer o problema da
mediação, sendo os processos de transição negados, de modo que sua investigação
é inútil – tanto para o passado como para o futuro. O capitalismo, o patriarcado
moderno produtor de mercadorias é “separado” sem transições tanto para a frente
como para trás. Tal pensamento é incapaz de conceber qualquer ruptura consciente
mediada, pelo contrário, vai dar na pura afirmação, justamente através do
postulado de uma ruptura repentina.
Do seu
próprio fantasma de uma divisão de épocas positivistamente evolucionista, que
ele atribui ao conceito de “história de relações de fetiche, Wallner
simplesmente cai num duplo relativismo histórico, negando qualquer momento
abrangente, tanto relativamente às diferentes formações históricas em geral,
como também relativamente às transições contingentes. De certa maneira, Wallner,
Haarmann e Ulrich, através da sua ruptura com o contexto da Exit em grande
medida sem mediação nem continuidade, sem enfrentarem uma discussão de
conteúdos, francamente também executaram pessoalmente a sua ruína teórica. No
entanto, não se trata apenas de um decisionismo pessoal, mas este deve ser
colocado no contexto da crise da subjectividade pós-moderna, a mesma que produz
socialmente tal atitude e ideologia. Antes de penetrar mais neste contexto, no
entanto, é preciso esclarecer a continuidade involuntária do pensamento da
filosofia burguesa da história, no qual se insere esta metafísica da
descontinuidade; queiram os seus representantes admiti-lo ou não.
10.
Alinhar com o processo de desmoronamento da filosofia burguesa da história?
Como já
se viu relativamente à “visão da história” do ponto de vista específico da
modernidade, Gerold Wallner ignora em grande parte as referências teóricas no
seu raciocínio; a sua argumentação em lado nenhum está mediada com o progresso
da reflexão burguesa sobre a teoria da história e não faz qualquer referência à
respectiva literatura, pelo contrário, permanece solta, ao estilo de um
“pensamento próprio” que nunca sabe que já está sempre num contexto, correndo o
risco de se adaptar inconscientemente a uma tendência que já está
pré-determinada e leva muito longe de qualquer intenção crítica. Se Wallner no
posfácio de seu artigo diz com orgulho: “Audaciosamente contei a história
pertencente ao paradigma moderno, quase ao fóssil característico da modernidade”
(Wie es mit den Leuten der Geschichte weitergeht [Como prossegue a história
com as gentes], ibid.), pois isso não será assim tão “audacioso”, ou
aparecerá como “audacioso” apenas no interior do discurso até aqui havido da
crítica da dissociação-valor, ao passo que na realidade o argumento se liga
simplesmente a um discurso burguês há muito definido fora do nosso campo de
crítica. Wallner parece assim um pouco como aquele homem famoso que isolado na
selva reinventa a roda e com isso fica feliz, quando já há auto-estradas cá
fora.
O seu
raciocínio refere-se implicitamente a um discurso que já circula há 150 anos
pela discussão académica da teoria da história. Trata-se da oposição entre
“verdade da história” (universalismo) e “historicidade da verdade”
(relativismo), entre “explicar” (filosofia da história) e “compreender”
(hermenêutica), entre continuidade teleológica (metafísica do progresso numa
base ontológica) e descontinuidade/ruptura (metafísica da contingência), entre
universalidade (ponto de vista trans-histórico) e particularidade
(“individualidade” das épocas, sucessão em série de “práticas”) da história.
Para uma crítica radical, o importante seria, como em todas as oposições polares
do pensamento burguês, decifrar a sua identidade negativa e chegar a uma maneira
de pensar para além dela. Wallner, no entanto, toma partido visivelmente apenas
por um lado da polaridade burguesa, ou seja, pelo relativismo, pela “dimensão da
compreensão” ou hermenêutica, pela metafísica da contingência ou da
descontinuidade e pela singularidade/individualidade ou particularidade
abstracta do objecto. Na sua ânsia de subsumir denunciatoriamente o conceito de
“história de relações de fetiche” sob a clássica metafísica da história no
sentido de Hegel ou do materialismo histórico, ele cai apenas do outro lado da
imanência polar da teoria da história do pensamento burguês.
No
entanto, esta polaridade imanente tem um conteúdo ideológico perfeitamente
definido. É a oposição interna reencontrada entre iluminismo burguês e
contra-iluminismo burguês (que deve ser entendido como a outra face do próprio
iluminismo), entre racionalidade capitalista (androcêntrica) e irracionalismo
(igualmente androcêntrico), entre pensamento progressista e reacção romântica,
como também de algum modo na discussão da teoria da história enquanto oposição
entre universalismo e relativismo, entre explicação (quase naturalista) e
compreensão (intencional), entre continuidade “de acordo com uma lei” e
descontinuidade contingente etc., oposição em que o lado contra-iluminista teve
os seus principais representantes entre os filósofos, historiadores e teóricos
da história no contexto da “ideologia alemã” ou dos seus antecedentes; e de
facto com profundas repercussões na pós-modernidade, em parte através dos
desvios franceses, onde elementos deste pensamento figuram agora por todo o
mundo como suplantação meramente aparente da velha oposição, coincidindo cada
vez mais com um apagar das oposições entre “esquerda” e “direita”, “liberal” e
“conservador”. Este apagamento das antigas oposições mostra indiretamente a
crise fundamental das bases sociais comuns, crise donde surge a exigência de uma
crítica categorial da modernidade com base na teoria da dissociação-valor, que
não tem nada a ver com a corrente contra-iluminista e que também tem de ser
formulada justamente em termos de teoria da história. Uma vez que Wallner agora,
sem reflectir sobre isto, se junta unilateralmente à corrente burguesa da teoria
da história ligada à tendência do contra-iluminismo e aí enraizada, está a
dirigir-se, é preciso dizê-lo desde já, para um terreno pantanoso no qual a
crítica radical só pode perder-se.
Não se
trata aqui apenas de uma polaridade estrutural do discurso moderno da teoria da
história, mas também do seu tratamento em ligação com o desenvolvimento da
sociedade, isto é, com a ascensão e crise do moderno patriarcado produtor de
mercadorias. Estamos portanto perante uma “história da teoria da história” (ou
da filosofia da história) que é mediada com a história interna do capitalismo e
com os “interesses condutores do conhecimento” a ela associados, no sentido da
respectiva auto-afirmação do sujeito masculino e branco ocidental (MBO), e que
também se manifestou na visão da história e nas suas modificações.
Como
“grandes orientações” aqui no essencial “cristalizaram-se três tipos de
pensamento histórico: filosofia da história, historicismo e pós-história... A
filosofia da história dominou do século XVIII até ao início do século XIX, o
historicismo é essencialmente um fenómeno do século XIX e início do século XX, a
crítica radical da filosofia da história e a pós-história pertencem à segunda
metade do século XX” (Johannes Rohbeck, Geschichtsphilosophie [Filosofia da
História], Hamburgo 2004, p. 21). Claro que isto é uma divisão esquemática,
mas que pode ser útil para uma orientação básica, como visão geral. Na verdade,
essas três “grandes orientações” sobrepõem-se, há vários remakes e, como
na história sócio-económica da sociedade (história da modernização) também na
história da teoria da história se encontram “dessincronizações”. Mas essas
diferenciações não podem ser aqui abordadas.
A
filosofia da história em sentido estrito, como já se viu, pertence primeiramente
ao iluminismo e à sua continuação até Hegel. Caracteriza-se por duas marcas
essenciais, a saber, em primeiro lugar, por um fundamento ontológico
trans-histórico e, em segundo lugar, por uma determinação teleológica; a
história como “colectivo singular” deve, por conseguinte, ter uma orientação. O
fundamento ontológico já foi lançado nos princípios do iluminismo como ontologia
a-histórica ou trans-histórica da razão; ou seja, “da” razão “do” homem como
tal, em que o “homem” era explicitamente entendido como o sujeito masculino e
branco ocidental (MBO) (como em Kant). Daí resultou também no contexto da
colonização externa a desqualificação racista da humanidade não-europeia,
especialmente dos negros africanos, como semi-homens “irracionais”.
Este
fundamento ontológico foi posteriormente completado por uma teleologização da
história culminante em Hegel; como já foi mencionado, em conexão com a expansão
social do “trabalho abstracto” e com base na sua entrada indirecta para a
reflexão histórica, à medida que começou o desenvolvimento do capitalismo sobre
os seus próprios fundamentos com a industrialização. De acordo com o
desenvolvimento real, foi assim dinamizada a ontologia da “razão” e do “trabalho
abstracto” e estendida para trás na história como sua “orientação final”, como
processo ascendente de formas inferiores para formas superiores. Esta filosofia
da história moderna clássica aproveitou a ideia pré-moderna de uma analogia
entre o processo de crescimento dos indivíduos e o desenvolvimento histórico das
sociedades (nisso um momento de continuidade na reflexão); mas agora já não no
sentido do tempo agrário cíclico, como processo de ascensão e declínio, mas no
sentido do tempo linear moderno do “trabalho abstracto”, como processo de
desenvolvimento ascendente, justamente como metafísica do progresso. O fim
temporal, a morte cai aqui significativamente fora da observação; a história
linear só deveria percorrer a subida do estado irracional através das idades
imaturas até à “situação definitiva” do MBO maduro, “adulto” (até Marx se refere
nos Grundrisse aos gregos antigos como “crianças precoces”). Esta
filosofia da história burguesa clássica, determinada ontológica e
teleologicamente, pertence claramente ao optimismo capitalista desde a Revolução
Francesa, cuja metafísica do progresso se referiu cada vez mais à encarnação da
“razão” na ciência e na indústria, tendo a “razão” sido logo reduzida ao
positivismo.
Marx e o
marxismo viraram esta filosofia burguesa da história “de modo materialista” numa
história da dialéctica de “forças produtivas e relações de produção”. Como
noutras questões da reflexão filosófica, da política, da economia etc., também
relativamente à filosofia da história este pensamento se concebe como “herdeiro”
legítimo do iluminismo e do idealismo alemão, enquanto “a burguesia” teria
atraiçoado a sua própria “herança”. Para Marx, este desenvolvimento é bastante
fragmentário e de modo nenhum claro, porque também a este respeito o Marx
“exotérico” e o “esotérico” não condizem; mas no marxismo do movimento operário
encontra-se uma continuação muito linear e frequentemente mecânica da metafísica
do progresso burguesa em trajes “materialistas”.
De facto,
a filosofia burguesa da história, em paralelo com a viragem materialista do
marxismo (e em defesa furiosa contra ele) continuou a desenvolver a sua “visão
da história” de uma forma completamente diferente. Mesmo Hegel e a metafísica do
progresso se tornaram objecto da crítica burguesa formulada na teoria da
história do chamado historicismo. O historicismo negou cada vez mais o
continuum de uma história de desenvolvimento ascendente da humanidade e,
portanto, a “história dum colectivo singular”. Em vez disso, ele enfatizou a
“individualidade” e “espírito” específico de cada época, épocas que já não podem
ser ligadas por qualquer laço interior, mas devem estar numa sequência meramente
contingente. O conhecimento histórico não será possível no sentido de uma
“verdade da história” universal através do “esclarecimento” objectivo da teoria
da história segundo o modelo das ciências naturais, mas apenas através de um
“entendimento” (hermenêutica) como “empatia divinatória” (Dilthey) com o
espírito da época e a sua “intencionalidade”. Como instrumento para esta
compreensão foi desenvolvida a crítica das fontes (que Wallner refere de modo
completamente errado; voltarei ao assunto no final com mais detalhe); como
legitimação teórico-metodológica, o reconhecimento do carácter historicamente
relativo da própria posição e do carácter interpretativo da ciência da história,
que não poderia reivindicar nenhuma objectividade (ao contrário das ciências
naturais).
Aqui
também deve ser procurada a raiz do discurso das “duas culturas” (C. P. Snow),
da oposição entre as ciências naturais e as ciências humanas; outra polaridade
imanente ao pensamento burguês que deve ser suplantada, envolvendo a reflexão
crítica as condições sócio-históricas de ambas as formas do saber. Se o
historicismo se retirou para o entendimento como empatia (interpretativa), ele
subjectivou a teoria da história de modo igualmente unilateral, tal como nas
concepções positivistas ela foi inversamente transformada numa ciência
pseudo-natural (à semelhança do que aconteceu no desenvolvimento da economia
política). A polaridade imanente ao pensamento burguês emergiu a partir de então
na teoria da história como oposição entre positivismo e hermenêutica,
generalizada como a diversidade das abordagens de “ciências naturais” e
“ciências humanas”. Implicitamente, com a subjectivação do pensamento da teoria
da história através do historicismo, também a fundamentação ontológica
trans-histórica do processo histórico foi questionada, mas ao mesmo tempo foi
ainda mais reelaborada com conceitos ontológicos e categorias modernas
ontologizadas. A dialéctica sujeito-objecto do pensamento moderno constituído na
lógica do valor e da dissociação reproduz-se também na teoria da história; a
subjectivização e relativização hermenêutica vira-se com rigidez ontológica em
lei pseudo-natural (e vice-versa), como também se verá com mais detalhe em
Wallner & Cª.
O
reconhecimento pelo historicismo da relatividade da historicidade e da
contemplação da história não seguiu qualquer interesse crítico contra o
capitalismo, pelo contrário, estava ligado à sua afirmação incondicional. A
modificação da “visão da história” burguesa seguiu aqui dois pontos de vista em
função do interesse. Por um lado, essa relativização reflecte as contradições
capitalistas gerais agravadas na industrialização e no surgimento do
imperialismo nacional, sob cuja impressão a metafísica do progresso clássica
começou a desaparecer. Após o marxismo do movimento operário ter “herdado” esta
metafísica do progresso na forma invertida “de modo materialista”, o pensamento
académico oficial virou-se, no sentido da afirmação, e não apenas em termos de
teoria da história, num gesto de relativismo e cepticismo “doutos”.
Por outro
lado, esta viragem burguesa da “visão da história” passou por um particular
florescimento no contexto da constituição nacional alemã “atrasada” e da
“ideologia alemã” daí surgida. O Império Alemão recém-fundado precisava de uma
legitimação histórica específica, em que era preciso provar, contra o
“universalismo ocidental”, a particularidade do sangue alemão, a
“individualidade histórica” da germanidade fundada “na raça”. Em termos de
filosofia da história, esta ideologia foi por sua vez universalizada como
“individualidade” autónoma dos “povos”, épocas e culturas; e isto recorrendo a
Herder, que já no final do século XVIII tinha sublinhado este ponto de vista. A
metafísica da contingência da teoria da história e a hermenêutica da história no
sentido de “empatia” para com os passados dilacerados, pensados como
inacessíveis a qualquer “explicação” teórica e mistificados, têm as suas raízes
claramente nesta beberagem da ideologia alemã, que remonta ao final do século
XVIII.
Sob o
impacto das guerras mundiais e da crise económica mundial na primeira metade do
século XX, o historicismo foi dar na chamada pós-história, constituindo
Nietzsche e Heidegger momentos de mediação. A pós-história inicialmente
significava um retorno à filosofia da história e ao seu fundamento ontológico,
mas agora virada negativa; como uma espécie de metafísica do anti-progresso ou
teoria ontológica do destino, da ausência de sentido e muitas vezes também da
catástrofe. Spengler juntou este ponto de vista com a teoria da
“individualidade” do historicismo no seu Untergang des Abendlands [A
decadência do ocidente]; mais tarde a pós-história focou como ponto
principal o “fim da significação” e a extinção da história no Estado de massas
tecnológico, e isso de diferentes maneiras em Gehlen, de Jouvenel, Jünger, de
Man, Kojève entre outros. Este pensamento da pós-história é aparentado e mediado
com a ideologia da “revolução conservadora”, que também contribuiu para
flanquear o nacional-socialismo no campo das ideias. A ênfase no destino
(Heidegger) e na ausência de sentido refere-se tanto à crise incipiente da
identidade masculina, como à autonomização unidimensional da tecnologia, dos
media, do consumo de massas etc. O contexto da forma capitalista de relação de
dissociação-valor é aqui em grande parte ocultado ou reinterpretado de modo
anti-semita e anti-americano; nessa medida trata-se de um processamento
profundamente afirmativo e virado ontológico das experiências da época
catastrófica.
Também
Benjamin, Horkheimer e Adorno são frequentemente atribuídos à pós-história.
Encontram-se realmente momentos dela, por exemplo na Dialektik der Aufklärung
[Dialéctica do Esclarecimento], como é o caso da ontologização da dominação
tecnológica da natureza como dominação dos seres humanos e como fatalidade. Mas
em Adorno estes pensamentos são sempre simultaneamente mediados com uma crítica
da forma capitalista e com um impulso anti-ontológico agudo, especialmente
contra Heidegger. Portanto a sua atribuição à pós-história (como em Rohbeck) é
mecânica e superficial; assim apaga-se a diferença crucial.
Desde os
anos 60 e 70 pode falar-se até certo ponto de uma segunda onda da pós-história
no contexto da pós-modernidade. A fórmula cativante de Lyotard sobre o “fim das
grandes narrativas”, tornada rifão do pensamento pós-moderno, foi aceite por
este pensamento e por todo o discurso pós-moderno na reflexão sobre a teoria da
história; e justamente porque se pretende que esta seja definitivamente posta de
lado. Mesmo a filosofia da história tornada negativa da primeira onda da
pós-história é objecto de crítica, não podendo a história como tal aparecer já
nem sequer como negativa.
Dois
pontos de vista são aqui aduzidos no essencial. Por um lado, qualquer pensamento
abrangente é considerado como “totalitário”; a história (e a sociedade) são
dissolvidas e atomizadas. Tal como no historicismo, mais uma vez o momento
“explicativo” da teoria da história é objecto de rejeição; mas esta abordagem é
radicalizada e virada até mesmo contra o próprio historicismo: agora já nem
sequer devem existir épocas ou “culturas” entre si completamente
descontextualizadas mas em si ainda coerentes, com cujo “espírito” se poderia
estabelecer “empatia”, mas a “individualidade” histórica é mais uma vez
degradada em fenómenos particulares como “átomos de história” (em Foucault
desfazendo-se entre si em “práticas”), sem qualquer contexto abrangente, por
isso também sem qualquer conceito de época ou de formação. Assim, “... Lyotard
exige, em vez da grande narrativa, muitas pequenas narrativas. No lugar da
história do colectivo singular deve surgir a pluralidade das histórias, em vez
da unidade, a multiplicidade” (Rohbeck, ob. cit., p. 147).
Por outro
lado, como consequência lógica desta atomização da história, nega-se qualquer
momento de continuidade. Não devem existir mais quaisquer transições nem
processos de transformação, mas o “programa da descontinuidade” (Foucault)
reconhece apenas “rupturas” repentinas entre “séries” (um conceito tomado da
escola histórica francesa dos Annales) descontextualizadas. Para
Foucault, que declarou francamente o “assassinato da história”, desta
absolutização da descontinuidade e da ruptura decorre a “singularidade radical”
dos acontecimentos históricos, como ele diz no trabalho Von der Subversion
des Wissens[Da subversão do saber]. Justamente neste contexto de
argumentação Foucault orienta-se, como ele mesmo diz, fundamentalmente por
Nietzsche e fundamentalmente contra Marx (apesar da “fraternidade” sublinhada
pelo Foucault tardio em relação à teoria crítica de Adorno, por ele descoberta
tarde, ele exclui aqui explicitamente o curso dos pensamentos sobre a teoria da
história, orientando-se neste aspecto também contra Adorno).
Como já
se viu, Foucault não fica absorvido nesta metafísica da contingência e da
descontinuidade; mas as suas elaborações conceptuais analíticas e investigações
materiais susceptíveis de integração no conceito de “história de relações de
fetiche” devem ser rigorosamente separadas do programa pós-moderno de
fragmentação teórica e das suas conotações ideológicas. Pois a anti-teoria da
história do pensamento pós-moderno, que figura como segunda onda da
pós-história, como última etapa da decomposição da “visão da história” burguesa,
reflecte de modo completamente afirmativo a decomposição na crise do moderno
patriarcado produtor de mercadorias desde o último terço do século XX. Uma vez
que se desfaz qualquer conceito de teoria da história abrangente, mesmo apenas
no sentido da coerência de uma época ou formação, a crise fundamental do
contexto da forma social deve ser escondida. Se não há qualquer formação
coerente da modernidade, tal a “esperteza” deste raciocínio, então também não há
um fim para esta formação histórica, porque não pode acabar o que não existe (ou
que supostamente existe apenas num modo de pensar crítico declarado
fundamentalmente obsoleto).
A
renúncia a qualquer conceito abrangente de teoria da história coincide com a
ausência de uma reflexão crítica sobre o todo da própria sociedade capitalista.
A atomização do contexto social é reinterpretada como “diversidade”, a crise
como “abertura contingente” e “ruptura”, sem questionamento do contexto formal;
e esta ideologização surge novamente como atomização da história e sua
dissolução em momentos individuais contingentes. Tanto em termos de teoria da
sociedade como de teoria da história o pensamento dos contextos abrangentes é
tornado tabu e acusado de “totalitarismo” para não ter de se estabelecer nenhuma
conexão entre crise e crítica do todo negativo. A crítica deve ser obrigada à
particularidade de práticas discursivas ou completamente dissolvida.
Agora
seria de facto errado, contra a desintegração final da filosofia burguesa da
história, querer fazer valer mais uma vez a sua “herança”, como o fez o marxismo
tradicional em fases anteriores deste processo de decomposição. Pelo contrário,
trata-se de suplantar a filosofia burguesa da história como tal, como expressão
ideológica das relações de dissociação-valor, e esclarecer o contexto interno da
“visão da história” moderna clássica, com os seus produtos de dissolução
progressiva no historicismo e nas duas ondas da pós-história. Mas Wallner,
Haarmann e Ulrich fazem exactamente o contrário; eles criticam a filosofia da
história universalista iluminista, incluindo a de Hegel e a do materialismo
histórico de Marx, apenas no sentido do pólo oposto imanente e das configurações
pós-hegelianas da “visão da história” burguesa. O que se fez passar por “outro
olho” completamente diferente para além da “visão tradicional”, como maneira de
pensar inteiramente nova e até mesmo como um maior desenvolvimento da teoria
crítica da dissociação-valor, não é senão a viragem para o processo de
decadência da filosofia burguesa da história, que apenas é criticada do ponto de
vista dos seus próprios produtos de dissolução. Com isso pode agora a musa
inspiradora de Ulrich ser definitivamente apanhada como a do demónio da
pós-modernidade.
Há no
entanto um pequeno problema. Porque, na medida em que esta tendência de viragem
para os produtos da dissolução da filosofia burguesa da história ainda se
legitima no contexto da teoria crítica da dissociação-valor (que começa a
abandonar), ela não pode renunciar ao conceito de formações históricas, ou seja,
não pode sem mais atomizar a história completamente como Foucault. O conceito de
formação ou constituição histórica, como determinação em cada caso abrangente,
apresenta no entanto na reflexão da crítica da dissociação-valor um momento de
continuidade relativamente à teoria de Marx. O materialismo histórico de Marx,
uma história de forças produtivas e lutas de classes, é transformado numa
“história de relações de fetiche” com a ajuda do conceito de fetiche; e só assim
pode o conceito de formações históricas ser mantido no campo da crítica
marxiana. Descartando agora Wallner & Cª. fundamentalmente o conceito de
“história de relações de fetiche”, eles deixam o conceito de formação
implicitamente no ar. A metafísica pós-moderna da diferença, da contingência e
da descontinuidade é com ele realmente incompatível.
O
falatório de Wallner sobre o “ponto de vista hermenêutico” sugere como este
problema deve ser resolvido, ou seja, através do recurso ao historicismo e à sua
ideia de épocas, cada uma com o seu próprio “espírito”. De qualquer modo em
Wallner a tendência para a “história espiritual” e para a dissolução da história
na intencionalidade respectiva dos “antepassados” vai nessa direção. Este
recurso positivo ao historicismo como precursor da metafísica da diferença
pós-moderna também se encontra num pós-moderno liberal académico como Odo
Marquard: “A história universal torna-se humana apenas através do historicismo,
ou seja, através daquele modus de auto-distanciamento europeu tardio do
sentido histórico, que permite aos seres humanos... terem não só uma história,
mas muitas histórias, em que estão envolvidos e que podem e devem contar...”
(Odo Marquard, Apologie des Zufälligen [Apologia do contingente],
Stuttgart, 1986, p. 72). Este é o “som original” de
Die Leute der Geschichte [As
gentes da história]
de Wallner, mesmo que ele talvez não o saiba. Porém a história universal não se
tornou “humana” com o historicismo, mas sim realmente desumana enquanto
relativismo histórico, porque mediada através da filosofia da vida e dos seus
derivados aprofundados no anti-universalismo específico do nacional-socialismo.
Em vez do conceito crítico de “história de relações de fetiche” agora então um
conceito afirmativo de formação com o “espírito das épocas” do historicismo como
pano de fundo.
Com isto,
no entanto, em Wallner & Cª. o conceito de formações históricas é retirado do
campo da crítica marxiana e transplantado para o campo da “ideologia alemã”,
onde o historicismo radica e de que é parte integrante. O conceito de formação
neste sentido confunde-se então com o conceito a-histórico de “historicidade”
existencial que surge da transformação do historicismo e da hermenêutica da
história em Nietzsche e especialmente em Heidegger. Só se pretende evitar a
completa atomização pós-moderna da história de modo que o mais recente produto
da dissolução da filosofia burguesa da história seja contraposto a um anterior
em relação ao conceito de formação. Confirma-se a suspeita de que justamente as
referências de Foucault que devem ser descartadas são reconfiguradas para uma
falsa “salvação” do conceito de formação arrancado à força do campo da crítica
marxiana. Pois como poderiam Wallner & Cª. de outro modo continuar sequer a
falar de formações históricas?
Atrás do
recurso implícito ao historicismo, combinado com uma adaptação da metafísica
pós-moderna da diferença e da contingência, espreita uma furtiva
nietzscheanização e heideggerização da crítica da dissociação-valor, que assim
deixa de o ser e desiste de si mesma para desembocar numa tendência reacionária,
que também já se manifestou na inversão e deturpação do conceito de metafísica.
Não seria a primeira vez que um pensamento assente na crítica categorial da
modernidade deriva numa direcção simplesmente contra-iluminista. Isso já
aconteceu a Adorno com alguns dos que receberam a sua obra. Esta queda e esta
ruptura com a crítica da dissociação-valor são dissimuladas com a pretensão
presunçosa de conseguir supostamente “pensar contra si mesmo” com Adorno e
Foucault, o que, contudo, mais que nunca equivale na realidade a um sacrifício
da própria identidade por motivos bastante pré-teóricos, como pretendo mostrar
no próximo ponto.
(continua)
Original
GESCHICHTE ALS APORIE.
Vorläufige Thesen zur
Auseinandersetzung um die Historizität von Fetischverhältnissen. Dritte Folge,
in:
rubrica “Theory in progress” da homepage da EXIT!, 24.05.2007.