GELD OHNE WERT
Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der politischen Ökonomie
Linhas gerais para
a transformação da crítica da economia política
20. O sacrifício e o regresso perverso do arcaico
Ao método positivista de elaboração
teórica, que só se move operativamente num
mundo composto por factos empíricos cuja constituição não toma em consideração,
permanecendo, por isso, categorialmente afirmativo, corresponde, por
conseguinte, uma ontologização categorial: a ideia de um desenvolvimento
trans-histórico de categorias reais idênticas de “trabalho abstracto”, valor e
forma do dinheiro, tal como estava esboçado em Hegel e, “materializado” por
Engels, permaneceu característico da corrente marxista dominante, incluindo a
ortodoxia recente. Como demonstrámos, a crítica da
Nova Leitura de Marx relativamente a
esta concepção estacou a meio do caminho, visto que esta elaboração teórica,
devido à sua redução à filologia de Marx, não foi capaz de englobar na reflexão
nem as formações pré-capitalistas, nem a constituição histórica do capital,
tendo assim de deixar este campo por conta da ontologizante leitura
tradicional.
Em Heinrich, a “teoria do valor monetário” pode até ser interpretada como sendo
também válida para as sociedades pré-capitalistas, o que remeteria para um
entendimento trans-histórico, apenas modificado, das categorias fundamentais do
capitalismo.
Assim, na disputa em torno da teoria de
Marx, os problemas da ruptura categorial histórica entre as sociedades
pré-modernas e o capitalismo, bem como da verdadeira génese do dinheiro – sacral
na sua origem –, perderam-se entre a ortodoxia e a
Nova Leitura de Marx. Mas eles reaparecem não só em investigações
históricas dedicadas à matéria, por exemplo de Laum e Mauss até Le Goff, mas
igualmente numa argumentação minoritária da teoria crítica que se esforça por
determinar uma relação ou mesmo uma identidade entre o capitalismo e a religião.
Nisto se oculta, evidentemente, o carácter de fetiche específico do capital que,
embora já não seja o mesmo que o da constituição religiosa propriamente dita,
não deixa de ter em comum com este determinados momentos, sobretudo o carácter
de um pressuposto cego e de uma regulação inconsciente da reprodução.
São precisamente estes os momentos que
o senso comum arquipositivista da esquerda marxista vulgar ou pós-marxista nega
com toda a veemência para, afinal, reduzir a relação de fetiche da “riqueza
abstracta” a acções subjectivas imediatas, guiadas por interesses e
relações de poder sem pressupostos. Neste processo apaga-se uma vez mais a
diferença decisiva entre a riqueza concreta e a
riqueza abstracta, ou seja, a determinação formal é positivada
acriticamente, como se o dinheiro fosse porventura tão evidente como a matéria
natural dos artefactos. Todo o problema da forma e da substância, juntamente com
o carácter de fim-em-si, é imputado a umas quaisquer
mistificações de Hegel, escórias de um pensamento especulativo e afins,
de modo que também a comparação com a religião apenas pode colher,
evidentemente, escárnio e maldizer. Afinal, a única
coisa que existe é a dominação racional e a vontade de explorar dos
proprietários privados dos meios de produção que simplesmente quereriam
enriquecer à custa dos outros; para que servem abstracções dialécticas tão
rebuscadas se a única coisa que está em causa é… mas é o quê, afinal? Os
verdadeiros interesses vitais, as necessidades? Porque assumem então formas tão
insanas, mesmo nos próprios explorados? O obtuso positivismo de esquerda quer
sempre esquivar-se a esta questão porque teme perturbar com ela a consciência
empírica mediana, da qual, em última análise, ele próprio faz parte; e, por
isso, quer fazer de conta que, no fundo, tudo é “bem simples” e não há que
perder muito tempo a preocupar-se com a insanidade da forma como, infelizmente,
se desenrola a quase totalidade da vida.
O mesmo árido
positivismo caracteriza a corrente dominante do pensamento pós-moderno,
se bem que de uma forma “virtualizada”. O carácter fetichista do capital é
recalcado do mesmo modo ou, no fundo, já nem sequer é entendido; a única coisa
que acontece é que os factos toscos e supostamente “simples” são percebidos de
outra maneira. Já não é a relação entre as classes no sentido de uma relação de
exploração subjectiva que está no centro das preocupações, embora também este
momento ainda tenha um papel a desempenhar nas variantes de esquerda. Trata-se
agora de uma relação do indivíduo abstracto e isolado com o valor,
concretamente, com o céu financeiro que, em conformidade com as metamorfoses
sociais pós-modernas, se converte numa factualidade “normal” e “natural” de que
não se deve fazer um enigma e que não se deve explicar de forma especulativa nem
criticar, visto que, se assim não for, o intelecto normal pós-moderno fica
inquieto e recalcitrante. A suprema mistificação
faz-se passar pela desmistificação mais esclarecida. Com o
que, como não podia deixar de ser, o pós-modernismo mais uma vez revela ser o
último estádio da razão iluminista do capitalismo.
A remissão para um
nexo entre “capitalismo e religião”, pelo contrário, procura tornar visível a
irracionalidade interna e o carácter
místico-real ou metafísico-real da relação social supostamente
arqui-racionalista. O mais tardar a partir da chamada de atenção de Marx, não só
para os “caprichos teológicos”, mas também para as “formas insanas” de uma
objectualidade pretensamente simples das mercadorias enquanto
objectualidade
do valor, também a comparação metafórica da
relação formal capitalista e da lógica da acção que daí decorre, com
perturbações mentais ou psicológicas, faz parte do repertório deste modo de
crítica diferente, verdadeiramente radical. No entanto, a crítica marxiana do
fetiche, que constitui o ponto de partida, ficou durante muito tempo na penumbra
ou foi ignorada por completo porque o
marxismo do movimento operário,
positivista no seu âmago, praticamente não sabia o que fazer dela. Quanto a
isto, pouco mudou até hoje na corrente marxista dominante; e precisamente os
marxismos pós-modernos, que julgam estar à altura do seu tempo e que, a bem
dizer, já não são marxismos nenhuns, quase andaram a cultivar o positivismo e a
escamotear conscientemente, em larga medida, o problema
do fetiche (de Althusser até aos pós-operaístas) – o que constitui,
naturalmente, o caminho mais seguro para cair
ainda mais na
mistificação real e chocar ideologemas ainda mais irracionais.
Existe, ainda
assim, a corrente minoritária de elaboração de teoria crítica que desde sempre
esteve mais comprometida com o Marx “esotérico” e que, entre os elementos
medianos da esquerda positivista, não deixou de ser desde sempre denunciada como
sendo ela própria “esotérica”. Não é por acaso que esta vertente da teoria de
Marx, que tem por alvo o fim-em-si fetichista da “riqueza abstracta”, foi
recuperada precisamente no período entreguerras do século XX por pensadores
importantes e até posteriormente célebres, tal como outros (nomeadamente, Rosa
Luxemburgo e Grossmann) recuperaram o lado radical da teoria da crise de Marx.
Foram as profundas convulsões sociais induzidas pela guerra mundial
industrializada e pela crise económica mundial que fizeram surgir uma intuição
da constituição metafísica real do capital em alguns ensaios teóricos. Estas
tentativas ainda empreendidas a medo, que datam sobretudo dos anos 20 do século
XX e cuja acção se prolongou, em parte, até aos anos 40, também constituem o
pressuposto e a base da teoria crítica da dissociação e do valor aqui
representada. A corrente da mobilização de aspectos centrais do “outro” Marx
que, por aquela altura, teve uma breve primavera está sobretudo associada aos
nomes de Georg Lukács, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno. De resto, Benjamin,
contrariamente a Lukács e Adorno, ainda nem sequer podia conhecer então esta
referência a Marx, tendo chegado a este problema da constituição metafísica do
capital por reflexões próprias (porventura na referência crítica a Max Weber).
Foi um notável feito voltar a trazer à luz do dia, a muito custo, contra o
“pesadelo das gerações mortas” no seio do próprio marxismo, a dimensão oculta e
em larga medida recalcada do “apriorismo transcendental”, mesmo que naquelas
condições, evidentemente, apenas de forma parcial e arrastando ainda consigo
momentos ideológicos: por exemplo, em Lukács, a ontologia do trabalho; em
Benjamin, o elemento “messiânico”; e, em Adorno, o idealismo da troca. Começou a
formar-se o campo de uma nova teoria, posteriormente designada “teoria crítica”
que, após 1945, já poucos além de Adorno levaram por diante. Mas a abordagem
deste pensamento permaneceu errática e foi empalidecendo, sob a impressão da
prosperidade do pós-guerra e da paz fria, até ficar irreconhecível; nas formas
de recepção da nova esquerda a partir de 1968 foi, por assim dizer,
democraticamente domesticada e compatibilizada com o positivismo académico.
Tratamos a seguir
de um fragmento de poucas páginas de Walter Benjamin com o título
Kapitalismus als Religion [O Capitalismo como Religião], escrito por volta
de 1921 e apenas publicado a título póstumo, que recentemente foi objecto de
nova edição com uma série de comentários actuais (Baecker 2009). Este fragmento
é de uma utilidade inegável para o debate sobre
o carácter do dinheiro moderno e da sua crise, tal como o pretendemos fazer no
presente ensaio. Benjamin escreve: “No capitalismo vislumbra-se uma religião, ou
seja, o capitalismo serve essencialmente a satisfação das mesmas preocupações,
tormentos e inquietações a que outrora eram as ditas religiões a dar resposta”
(Benjamin 1985/1921, p. 100; trad. port. p. 30). Não deixa de ser
problemática
a equiparação imediata do capitalismo à religião, pois temos de nos abstrair em
demasia da ruptura profunda entre as formações constituídas de forma religiosa e
o moderno fetiche do capital, o mesmo se aplicando às referências legitimadoras
completamente diferentes em termos qualitativos. Esta tentativa de abordagem
tem, contudo, a sua justificação se considerarmos o facto de a tematização do
carácter metafísico real do capital ter estado completamente soterrada no que à
história das teorias diz respeito e, até hoje,
pouco ter avançado.
Ora, Benjamin
refere diversas características religiosas do fetiche do capital (que não
designa deste modo): “Em primeiro lugar, o capitalismo é uma pura religião de
culto, talvez a mais extrema que alguma vez existiu. Nele, tudo apenas tem
significado com referência ao culto; não conhece nenhuma dogmática em
particular, nenhuma teologia. Sob este ponto de vista, o utilitarismo ganha a
sua coloração religiosa. A esta concreção do culto está ligado um segundo traço
do capitalismo: a duração permanente do culto (...) Não existe nele nenhum “dia
de semana”, nenhum dia que não seja dia festivo no sentido terrífico do
desenvolvimento de toda a pompa sacral, do esforço mais extremo daquele que
venera. Este culto é, em terceiro lugar, culpabilizador. É de presumir que o
capitalismo seja o primeiro caso de um culto que não procura a remissão, mas a
culpabilização. Neste aspecto, este sistema religioso insere-se na queda de um
enorme movimento. Uma enorme consciência de culpa que não sabe remir-se recorre
ao culto, não para nele expiar esta culpa, mas para a tornar universal, para a
incutir na consciência (...) A transcendência divina caiu. Mas Deus não está
morto, está é integrado no destino humano (...)” (Benjamin, ibidem, pp.
100s.; trad. port. p. 31).
O momento mais
fraco, porque mais pobre, na argumentação de Benjamin é a referência ao carácter
de culto da relação do capital. Trata-se de uma
mera analogia que se fixa na superfície dos fenómenos. Certamente que as acções
quotidianas no capitalismo, do relógio de ponto até à caixa de supermercado,
passando pelo balcão bancário, recordam de uma maneira que chega a ser ridícula
grotescos rituais cultuais, o que há muito que se tornou um lugar comum na
literatura. Quanto a este aspecto, Benjamin compara as “notas de banco de
Estados diferentes” com as “efígies de santos de religiões diferentes” (ibidem,
p.
102; trad. port. p. 32). Se nos ativermos a esta analogia,
não é verdade que ao culto capitalista falte a dogmática e a teologia, pois
então que é a economia política
senão isso mesmo? A esta dogmática teologia económica corresponde, como
“religião para o dia-a-dia” (Marx), a comum ideologia popular para uso
doméstico, tal como em tempos a devoção popular
correspondeu à subtileza teológica.
Mas também se
poderia recorrer a outra analogia, nomeadamente, à já referida comparação com
uma doença mental. Nesse caso, a racionalidade capitalista do iluminismo seria
algo muito parecido com a razão interna de um sistema patológico que também pode
ser formulada por pessoas paranóicas como uma “ciência” bizarra, tal como a
encontraremos, porventura, nos arquivos de clínicas psiquiátricas. A diferença
seria então apenas entre um desvario puramente subjectivo e pessoal, e outro
objectivo e colectivo que se vestiu de sistema social e “ciência” reconhecida.
Ora, acontece que a possibilidade de diversas analogias (religião, demência)
indica que, embora estejamos perante algo de certo modo comparável, não se trata
do mesmo.
É um facto que a
segunda característica referida por Benjamin, a duração permanente do culto,
está correcta em termos empíricos, na medida em que todas as manifestações da
vida no capitalismo estão permeadas, com uma densidade historicamente crescente,
pela lógica da “riqueza abstracta” e dos seus
constrangimentos à acção. Mas, no fundo, é isto mesmo que configura, como o
próprio Benjamin assinala, uma diferença relativamente às formações agrárias de
constituição religiosa em que o dia-a-dia e o dia festivo ritual tendiam a estar
separados, pelo menos em termos exteriores. Sem dúvida poderíamos supor a
característica de uma permanência do culto para relações arcaicas,
pré-históricas, nas quais é provável que todas as acções sem excepção tenham
sido de carácter ritual e directamente associadas à relação de sacrifício. Neste
ponto, já poderia vislumbrar-se a funesta intuição de que o fetiche do capital,
de certo modo, não é só um “progresso” para além das
constituições
religiosas mas, ao mesmo tempo, o regresso
modificado de algo arcaico, e assim a razão iluminista do capitalismo se resume,
no seu âmago, a uma barbárie quase arcaica. Mas tudo não passa, justamente, do
“quase”; não é assim que a identificação imediata do capitalismo “como” religião
passa a fazer mais sentido. Com efeito, o capitalismo deve ser algo pior que uma
religião.
Finalmente, a
terceira característica referida por Benjamin também tem o carácter de uma
analogia, ainda que refinada. Evidentemente, o conceito de “culpabilização” é
polissémico[1].
Pode significar a culpa no sentido de uma falta pessoal que tem de ser expiada
ou compensada. Neste sentido, provém da estrutura, constituída pela religião, de
relações de obrigação pessoais (e
institucionais), tal como foi apresentada na primeira
parte desta investigação como determinante para as sociedades pré-modernas. No
sistema moderno do trabalho, do dinheiro e do crédito, porém, a categoria da
“culpabilização” transformou-se em algo
qualitativamente diferente[2].
Parecenças históricas na figura de relações putativamente iguais,
como empréstimo de dinheiro e crise da dívida, não passam de
aparências, visto que a relação de obrigação fetichista imediata e a relação do
capital fetichista objectivada são coisas fundamentalmente diversas, por muito
que as formas se apresentem superficialmente como idênticas. Tanto em termos de
história real como da história linguística, existem traços de união, mas que
justamente apontam para tudo menos uma continuidade religiosa.
Em Benjamin, a
verdadeira relação de continuidade apenas é formulada vagamente: “O capitalismo
– como se deve poder comprovar não só no calvinismo, como igualmente nas
restantes tendências ortodoxas do cristianismo – desenvolveu-se no Ocidente como
um parasita do cristianismo, a tal ponto que a história deste acaba por ser a
história do seu parasita, do capitalismo” (ibidem, p. 102;
trad. port. p. 32). Com isto, no
fundo, está dito que o próprio capitalismo não é precisamente uma religião e nem
sequer pode ser a continuação da religião por outros meios, permanecendo o
conceito de “parasita” da religião (cristã) pouco claro – e certamente não se
pode esperar muito mais de um
fragmento encontrado no espólio.
O problema parece
consistir em que Benjamin, por um lado, tende a entender a religião mais no
sentido moderno, como uma relação de fé subjectiva e como um culto exterior com
a finalidade de canalizar problemas psíquicos, e menos como a relação bem
material de reprodução agrária que a constituiu em termos históricos. Desta
percepção inadequada decorre, em seguida, o analogismo exterior com respeito a “preocupações,
tormentos e inquietações” igualmente indeterminadas em termos históricos, ao
passo que a verdadeira diferença social entre o fetiche pessoal das relações de
obrigação imediatas e o fetiche objectivado da “riqueza
abstracta” não é abordada e este último, se bem que seja objecto
de alusões, não é apreendido com precisão.
O que permite
um desenvolvimento ulterior não deixa de ser,
por outro lado, a ressalva de
que, embora a “transcendência divina (tenha caído)”, Deus
não está morto,
estando antes “integrado no destino humano”, o que constitui uma referência à
diferença entre a relação transcendente com Deus e a “imanência transcendental”
do fetiche do capital. O capitalismo não se encontra ancorado numa
transcendência, ou seja, não é uma religião, mas ainda assim está constituído de
forma transcendental, isto é, embora exista uma continuidade das relações de
fetiche, esta não é linear, mas interrupta. Ora, em que consiste exactamente a
relação entre a continuidade e a ruptura? Pelos vistos, ainda falta uma
determinação que possa aclarar este problema.
Bastará
um excurso prévio para demonstrar que os comentários da colectânea a que o
fragmento de Benjamin serve de base e de título pouco ou nada contribuem para
dar resposta ao problema colocado. Isto deve-se sobretudo ao facto de, na sua
maioria, nem sequer levarem a sério a negatividade da ideia de Benjamin, ou
seja, o seu potencial crítico, devido à sua fé póstuma pós-moderna permeada da
ideologia da classe média. Já apenas querem esconjurar a radicalidade do texto.
É certo que o editor Dirk Baecker constata na introdução (embora de uma forma
suspeitamente fácil e num tom bastante próximo da amena cavaqueira): “A questão
de saber se o capitalismo deve ser entendido como uma religião depara
presentemente com uma situação em que serão poucas as hesitações para
respondermos com um rotundo sim. Desde o momento em que a alternativa socialista
deixou de estar disponível (...), esta sociedade acredita no capitalismo. Crê
que este é o seu destino. E crê que ele constitui a única hipótese de dar forma
ao seu destino” (Baecker 2009, 7). Mas quem pensa que estas frases têm
subjacente uma intenção crítica, por mínima que seja, acaba por ver-se iludido.
A fé da sociedade no capitalismo também é a do próprio Baecker. Esta fé
reputa-se de esclarecida sobre o seu próprio papel de crença e, dito isto, ele
crê agora poder ser crente de modo nada problemático, tendo-se despojado da
ingenuidade primária e tornado jovial e
acriticamente auto-reflexivo.
É esta a
realização involuntária de Hegel dos pós-modernos, que julgam agora poder ser
ainda muito mais afirmativos com plena consciência do que foram anteriormente de
forma inconsciente; e tudo isto associado a um alegre agnosticismo quanto à
situação vigente: “A despreocupação actual
resulta do facto de que já ninguém reivindica conseguir entender e ordenar o
todo. E deste modo desaparece a disputa em torno da verdade que durante tanto
tempo tomou conta dos observadores profissionais desta sociedade, com especial
relevo para os intelectuais. Pelo contrário, esta despreocupação, que ainda há
pouco teria sido reputada de irresponsável e frívola, está associada a uma
consciência tanto mais apurada do elevado grau de estruturação que caracteriza a
sociedade. Já não se parte do princípio que o que acontece ou deixa de acontecer
é aleatório, mas de que é em todo o caso imprevisível e impossível de
estabelecer por cálculo, precisamente porque as
estruturas da sociedade são complexas e, de um modo incalculável, tanto
altamente sensíveis como incomensuravelmente robustas” (Baecker,
ibidem,
p. 8). E, assim, o sentido breve,
muito moderadamente “frívolo” e vincadamente positivista, deste longo discurso é
o seguinte: “Não nos veremos livres do capitalismo porque, no seu caso, não se
trata de outra coisa senão da tentativa, sempre de novo empreendida, de retirar
de determinadas situações lucros (...) que podem ser aproveitados de forma
produtiva noutras situações” (ibidem,
p. 12). Ora isto não tem
definitivamente nada a ver com Benjamin. Pretende-se enquadrar a sua tentativa
de virar a crítica radical da religião contra o próprio capitalismo no consenso
de que toda e qualquer crítica se tornou, de qualquer modo, impossível e, por
isso, é completamente indiferente se entendemos o capitalismo como religião ou
não.
No que diz respeito ao agnosticismo e à
metafísica da contingência, de resto, Michael Heinrich também segue as pegadas
do pós-modernismo. Com a mesma referência à pura “complexidade” como
pano de fundo, também ele afirma, em
oposição a supostas “certezas da filosofia da história relativamente a um
necessário fim do capitalismo” (Heinrich 2009, p. 33), uma fundamental
imprevisibilidade do desenvolvimento: “Se a história não for concebida, de um
modo determinista, como um processo que se move em direcção a um objectivo
previamente determinado, e se, em vez disso, o for como um processo em aberto,
isto significa que, embora muita coisa seja possível, nada é certo” (Heinrich,
ibidem, p. 33). Em primeiro lugar, confunde aqui mais uma vez uma
“filosofia da história” (que argumenta trans-historicamente) com enunciados
sobre a história interna do capital e a sua real teleologia imanente, se bem que
não linear. Em segundo lugar, confunde o lado objectivo com o lado subjectivo da
dialéctica capitalista, na medida em que transfere implicitamente o momento da
determinação para o âmbito da acção intencional, julgando facilitar assim o seu
jogo. Evidentemente, está inteiramente “em aberto” a questão de saber se surge
uma consciência social suficientemente dimensionada que queira abolir o
capitalismo. Mas o que não deixa de se mover “de modo determinista” em direcção
a um “objectivo previamente determinado” é a dinâmica objectiva da valorização,
precisamente porque se trata aqui de um processo cego do “sujeito automático”.
A metafísica da
contingência de Heinrich, tal como a de Baecker, não conta com aquilo que
Benjamin tem realmente por alvo ao determinar o capitalismo como religião, não
obstante a analogia que permanece exterior, não só no sentido de uma fé
meramente subjectiva mas, ao mesmo tempo (e em contradição com isso), como um
estado do mundo em que a “transcendência divina” imigrou para os assuntos
humanos e a relação social se objectivou de um modo paradoxal. Mesmo que não
esteja totalmente correcta em última instância, a determinação do capitalismo
como religião remete, ainda assim, para uma “falsa objectividade” que é
intrínseca à dialéctica fetichista sujeito-objecto e que torna, de facto, o
processo desencadeado reconhecível e explicável, mas justamente apenas sob a
forma da crítica radical, ao passo que ele se apresenta absolutamente
intransparente e contingente para a consciência afirmativa, mesmo na teoria e na
análise.
Norbert Bolz, um dissidente da teoria
crítica transformado em investigador de tendências pós-moderno, interpreta o
fragmento
de Benjamin de um modo em tudo similar ao de Baecker. Para ele, e quanto a isso
não deixa subsistir qualquer dúvida, Benjamin “realmente ainda é um dos
spectres de Marx. E já não há forma de prosseguir na sua senda” (Bolz 2009,
p. 190, realce de Bolz). Assim, o
fragmento do
capitalismo parece “actual” a Bolz apenas no sentido de supostamente antecipar,
de forma meramente descritiva, os fenómenos do “marketing do culto” de
hoje com o seu “reencantamento estético” pela marca como “emblema de totem” (Bolz,
ibidem, p.
201, 203), o que, por seu lado, comenta com a displicência de um
iluminista esclarecido: “O capitalismo como religião, neste caso, já não é um
diagnóstico crítico, mas a pura e simples autodescrição do
mercado” (ibidem,
p. 203). Bolz nem sequer entende o que o
fragmento de Benjamin realmente tem por alvo, para além de uma tal
interpretação e em articulação com a argumentação do Marx “esotérico”, a saber,
não os meros fenómenos de um culto do consumo ou da sua estetização, mas a
constituição transcendental da própria relação social que ficou definitivamente
incompreensível para o pensamento pós-moderno.
Até naqueles trechos em que Benjamin apenas fala em “culto” por analogia,
trata-se de uma referência a algo de muito mais fundamental, nomeadamente ao
carácter fetichista de fim-em-si da “riqueza abstracta”
e à submissão ao “princípio da culpabilização”, permanente e em si constituído
como infinito, do “trabalho abstracto” (a que ainda voltaremos mais abaixo).
Na mesma confusão que Bolz cai, de
resto, Kurnitzky, que também já não entende o conceito do fetiche da mercadoria
e do dinheiro em Marx e equipara o mesmo a um mero culto do consumo de
mercadorias. Com uma
estrutura de pulsões
a-histórica ideologicamente construída
como pano de fundo,
presume que seja a ânsia quebrada pela satisfação das pulsões que faz os seres
humanos – no fundo, apenas os homens constituídos de forma edipiana –
“recorrerem ao fetiche. Isto lança as bases do fetichismo na sua forma
patológica, mas também do fetichismo da mercadoria nos fetiches do consumo em
constante alternância” (Kurnitzky 1994, p. 98). A associação em curto-circuito
do imutável destino pulsional ao mercado
igualmente “eterno” necessita da redução do carácter do fetiche social à
analogia de fetiches sexuais (masculinos) e fetiches do consumo que são apenas
entendidos como formas diversas de uma satisfação postiça necessária, ao passo
que o fim-em-si transcendental do capital já não tem lugar neste constructo.
Benjamin
já tinha passado além deste ponto, embora este tema também
surja na sua obra.
É um facto que Kurnitzky,
contrariamente a Bolz, critica com acutilância a infantilização pós-moderna no
que diz respeito à postiça objectualidade
comandada pelas pulsões, na medida em que realça, de um modo que não deixa de
ser acertado, o carácter regressivo de um recalcamento e de uma desistoricização
do todo negativo. A tensão na gestão das pulsões
deve ser abrandada por encenações
superficiais de eventos de uma “disneylandização dos
contextos vitais da sociedade” (Kurnitzky, ibidem,
p. 126, realce de Kurnitzky) que também no consumo fazem da própria forma
vazia o pseudovalor de uso e já não permitem qualquer experiência. Mas apenas
quer reconhecer nisso uma perversão do “verdadeiro”
mercado e da sua função para a sublimação das pulsões. A constituição
unidimensional de um nexo entre a estrutura pulsional
edipiana e o mercado sobrevalorizado como
constructo a-histórico só é capaz de interpretar a “crise do
mercado” – de que Kurnitzky não deixou de se
aperceber – no quadro de uma ideologia neo-pequeno-burguesa em tudo similar à
dos marxistas residuais e dos pós-marxistas, como um desvio da senda da “virtude
da livre troca de mercadorias” a que julga estarem associadas todas as
realizações civilizatórias.
Se a teoria de Kurnitzky obscurece a
diferença histórica entre as relações de fetiche
pré-modernas e as do capitalismo, porquanto as atribui de um modo
igualmente trans-histórico à pulsão sexual sacrificada, Bolz, enquanto ideólogo
pós-moderno, já nem sequer se interessa pelo todo negativo. É precisamente neste
sentido que o fragmento
sobre o capitalismo de Benjamin acaba por se lhe afigurar “antiquado”
na exacta medida em que denuncia
esse todo “como” religião. Para Bolz, porém, o todo
–
e com ele a atribuição de
Benjamin –
é, de qualquer modo, uma mera aberração da teologia que se teria disfarçado de
crítica: “A crítica radical como máscara da teologia é um design teórico
familiar” (Bolz, ibidem, p. 203). Evidentemente que é preciso estarmos
para além disto. O todo que lunáticos como Benjamin ainda pretendem criticar nem
sequer existe realmente. Para Bolz, a “unidade” da sociedade não consiste no seu
“apriorismo transcendental”, mas, de acordo com Luhmann, na “diferença dos seus
sistemas funcionais” (ibidem,
p.
204). Afinal, já encontrámos uma perspectiva positivista em
tudo similar em Michael Heinrich, para quem o todo do capital também já consiste
unicamente na diferença
dos seus
sistemas funcionais da produção, da “circulação”, do
Estado/da política, etc., que de algum modo actuam uns sobre os outros (como já
tinha dado o exemplo
a superficial teoria de uma “sobredeterminação” de âmbitos
“relativamente autónomos” de Althusser). A partir daí,
já não estamos muito longe da magnífica conclusão de que o capitalismo nem
sequer existe enquanto todo pressuposto. Assim, Bolz afirma: “O capitalismo foi
a última invenção dos teólogos que pretendiam justificar a sua pretensão de uma
descrição crítica do todo social” (ibidem, p. 207).
Perante este pano
de fundo, Bolz está então em condições de constatar, no aqui e agora e com a
maior das descontracções, sobre o fragmento de Benjamin: “No nosso contexto, o
que está em causa é, naturalmente, o dinheiro como equivalente funcional, como
technical substitute para Deus. Trata-se da substituição de uma
substituição, visto que o Deus cristão crucificado, modernamente substituído
pelo dinheiro, já simboliza a substituição. O motivo do lucro funciona, tal como
o Deus único, como a fonte universal de motivação” (ibidem, p. 206). E
Bolz viu que tudo era bom. Não sabe o que ele próprio está a dizer e nem sequer
lhe interessa, aconchegado como está no complacente bem-estar pós-moderno de
sujeitos descentrados. Que o dinheiro seja um “equivalente funcional de Deus” é
uma questão de somenos enquanto o motivo do lucro funcionar como “fonte
universal de motivação”. E assim fará para todo o sempre.
É assim que Bolz
pode repreender Benjamin pela sua chamada de atenção para o problema estrutural
do endividamento como “repetição da culpa” que exclui esperanças de salvação
referidas ao futuro para fazer, a propósito, a observação lapidar: “Tão remoto,
tão pré-moderno. Em termos modernos, porém, a culpa[3]
remete para o futuro enquanto crédito ao investimento. A culpa equivale agora a
dívidas económicas” (ibidem, p. 206). Bolz não compreendeu minimamente
nem a argumentação de Benjamin nem a “economificação” da culpa. Pretende
reinterpretar positivamente a conversão do pecado original no sentido da
teologia da economia política como “crédito ao investimento para o futuro”. Em
primeiro lugar, oculta assim, como se fosse a coisa mais natural, o carácter de
fim-em-si fetichista da “riqueza abstracta”, sob cujo pontificado objectivado o
“crédito ao investimento para o futuro” apenas pode significar a continuação do
movimento de fim-em-si e a sujeição das pessoas a esta “roda de Juggernaut”
(Marx). Em segundo lugar, sabe tão pouco da economia cujos louvores canta que
nem sequer repara na alteração do carácter do “crédito ao investimento”, na
medida em que o sistema global de crédito antecipou, no início do século XXI,
massas de “trabalho abstracto” impossíveis de honrar e o capitalismo já gastou
todo o seu futuro “eterno” até à última gota. No entanto, Bolz partilha esta
ignorância cega não só com os teólogos da economia política, como com a maior
parte da esquerda quer académica quer política. Todos eles se recusam a
compreender a coisa, mesmo numa altura em que os estilhaços já assobiam por cima
das suas cabeças.
O próprio Benjamin
considera a sua ideia historicamente prematura: “A prova desta estrutura
religiosa do capitalismo, não só, como julga Weber, como formação religiosamente
condicionada, mas como fenómeno essencialmente religioso, ainda hoje conduziria
ao descaminho de uma polémica universal desmedida. Não podemos puxar a rede em
que temos assentes os pés. Mais tarde, porém, ter-se-á uma perspectiva de
conjunto” (Benjamin, ibidem, p. 100;
trad. port. pp. 30s.).
Apenas podemos conjecturar o que Benjamin quer dizer aqui com o “descaminho de
uma polémica universal desmedida”. Como decorre das duas frases subsequentes,
esta observação só pode realmente referir-se às condições históricas do seu
tempo (1921). Benjamin devia ter a noção de que o desenvolvimento ou mesmo a
“prova” da sua ideia não podia ser mediável com as condições de desenvolvimento
e consciência então existentes, ou seja, que apesar do eventual conteúdo de
verdade da teoria e da prática da crítica social (que, também para Benjamin, na
sua aproximação ao marxismo existente, apesar de toda a distância continua a
estar vinculada ao movimento operário e à forma da política), ele não poderia
ter sido implementado após a I Guerra Mundial: “Não podemos puxar a rede.” Por
isso, a ideia continua a ser uma intuição e um fragmento, tem de se remeter
historicamente para “mais tarde”. “Mais tarde”, porém, é agora, no início do
século XXI. Hic Rhodus, hic salta.
Importa, portanto,
resolver o enigma histórico e conceptual colocado por Benjamin. O capitalismo
tem traços cultuais, o que leva a identificá-lo como religião. Mas se se trata,
no caso, como já demonstrámos, de uma mera analogia, em que consiste esta
realmente e em que se distingue o capitalismo das formações pré-modernas,
agrárias e constituídas de forma religiosa? A referência à diferença entre a
constituição transcendente (relação com Deus) e a constituição transcendental
não deixa de estar correcta, mas ainda é demasiado abstracta; a referência às
representações e relações de obrigação pessoais por contraposição ao
movimento em si mesmo objectivado da “riqueza
abstracta” também está correcta, mas permanece
sobretudo fenomenológica. O que é mais precisamente, então, aquilo que
condiciona tanto a continuidade
como a
ruptura?
Em termos
puramente fenomenológicos, é o dinheiro que institui a continuidade
trans-histórica (de acordo com Marx, apenas a de uma “pré-história” bárbara com
inclusão do capitalismo). Mas, vistas bem as coisas, é, ao mesmo tempo, a
alteração qualitativa ou a mutação repentina do dinheiro em algo de
completamente diferente que, por seu lado, estabelece a ruptura. A
objectualidade do valor e o “trabalho abstracto” como pressuposto lógico de um
movimento em si mesmo da “riqueza abstracta” na forma do dinheiro (após a
ruptura) são, em termos históricos, apenas o resultado desta transformação. Mas
em que consiste realmente esta? Que “algo” social e, ao mesmo tempo, metafísico
real subjaz à nova lógica quando comparada com a antiga?
Pode dar-se uma
resposta por intermédio da determinação do estatuto drasticamente alterado da
essência do dinheiro, tal como resulta das investigações históricas de Laum até
Le Goff, que são ignoradas tanto pela chamada ciência económica como pelo
marxismo, e que também nas ciências históricas se mantiveram marginais até à
data (embora isso possa mudar). O que era o dinheiro pré-moderno? Começou por
ser o gelt, o sacrifício aos deuses, que originalmente foi um sacrifício
humano. Com este gesto pagava-se uma “culpa”
ou, melhor dizendo, cumpria-se um “dever” para que o Sol voltasse a nascer todos
os dias, para ser possível a alimentação no “processo
de metabolismo
com a natureza” (Marx), talvez para afastar ou atenuar as desgraças e os golpes
do destino, etc. Esta “objectualidade do sacrifício” simbólica, mas
necessariamente material, percorreu, em primeiro
lugar, um espectro histórico de metamorfoses, de substituições. Mas não
substituições de Deus, como Bolz opina e
Benjamin poderia dar a entender, mas substituições da própria
vítima: desde os seres humanos jovens de uma rara excelência ou especial beleza,
passando pelo gado bovino ou cavalar e outros animais sacrificiais, substituídos
posteriormente pelas representações simbólico-materiais desses animais na forma
de bolos ou hóstias, até ao metal precioso e à moeda cunhada. A
estrutura deste “dever sacrificial” foi, em
seguida, transferida sob múltiplas formas para as inter-relações sociais das
pessoas, mas com isso não foi de modo algum “secularizada”; pelo contrário, a
relação social (imanente) foi derivada da relação (transcendente) com Deus e
constituída como estrutura complexa de
“deveres” tanto pessoais como institucionais,
de acordo com o exemplo da objectualidade do
sacrifício. Isto não tinha nada a ver com uma economia ou um
modo de produção
no sentido do “trabalho abstracto” e das relações de valor.
Ora, em que
consiste o salto qualitativo no estatuto do dinheiro que, sob a forma de um
processo, se desenvolveu desde a chamada
protomodernidade com base nas condições da crise religiosa e da revolução
militar? O aspecto fulcral profundamente irracional ou até “insano” consiste no
facto de a velha objectualidade do sacrifício, por esse reacoplamento a si
própria (D – M – D’), se ter transformado num movimento de fim-em-si abstracto
e, justamente, se ter substituído assim ao poder transcendente. O sacrificado ao
mundo dos deuses transformou-se ele próprio em quase-deus. Do ponto de vista de
qualquer religião, só podemos estar aqui perante uma enorme blasfémia. Mas a
religião não era nenhum mero sistema de crenças, mas uma relação de reprodução
transcendentemente ancorada no “processo de metabolismo
com a natureza” e nas relações sociais. Na medida em que se convertia num
fim-em-si terreno em processo, a objectualidade do sacrifício era desvinculada
da referência à transcendência divina e gradualmente, com ela, também a
totalidade da reprodução.
O que restou foi a
expressão material da objectualidade do sacrifício que, afinal, já alcançara a
forma de moeda ainda no seu antigo sistema de referência. Embora a referência ao
mundo transcendente dos deuses tivesse sido cortada neste ponto, o dinheiro não
podia, ainda assim, tornar-se um objecto terreno “natural”. Era, daí em diante,
um objecto sacral pervertido, algo de sacro absurdamente secularizado, um
extraterrestre atirado para fora do seu contexto primitivo no mundo terreno que
constituía uma forma inaudita de alienação humana. Apenas possível neste novo
estatuto sob a forma de uma auto-referência tautológica (reflectida de modo
totalmente acrítico pela teoria funcional dos
sistemas como autopoiesis e ideologicamente aplicada a todas as relações
mundiais), transformou-se da objectualidade simbólica do sacrifício na
objectualidade
abstracta do valor que, na cega práxis humana
da sua acumulação enquanto fim-em-si, lançou as bases do sistema do “trabalho
abstracto”. O resultado criou a sua própria origem no processo desta
transformação da relação do sacrifício na chamada economia.
Este
fantasmático sistema do “trabalho abstracto” como
forma de movimento da “riqueza
abstracta” está no mundo, mas não é deste mundo. Não é nenhum
deus, mas o sacrificado que despertou para uma vida própria sintética, deveras
fantasmal. Nunca ninguém viu fisicamente deus nenhum, mas o dinheiro
transcendentalmente
autonomizado
pode tocar-se com a mão e até meter na boca, caso se queira. No entanto,
continua a ser um extraterrestre. A sua redução a
impulsos de lançamento electrónicos, por seu lado,
nada altera no apriorismo transcendental; não é por isso que se evapora rumo ao
céu. O que são as fantasias mais audaciosas da ficção científica
perante esta monstruosidade histórica? O capitalismo não é nenhuma religião, mas
sim a dissolução de toda a religião num movimento sacrificial terreno
autonomizado:
o fetiche do capital. Os fins limitados e imanentemente compreensíveis, diversos
e, numa fase inicial, surgidos separadamente, da história da transformação e da
constituição (revolução militar, protestantismo, evasões do emaranhado das
relações de obrigação pessoais) confluíram, à medida que eram postos em prática,
numa autopoiesis objectivada, ou seja, na dominação absurda sobre os
humanos de um objecto por eles próprios criado. O “domínio do Homem sobre o
Homem” de Marx já não é imediato, constituído de forma pessoal-sacral, mas a
função objectivada de uma sujeição a essa tal
acumulação como fim-em-si da antiga objectualidade do sacrifício.
Nesta perspectiva,
também a revolução religiosa do cristianismo e as suas consequências desde a
Antiguidade tardia se apresentam a uma outra luz. Na figura de Cristo, é o
próprio Deus que se sacrifica para libertar os humanos da sua velha “culpa”.
Aqui ocorre uma transformação simbólica da divindade transcendente na vítima
terrena e física, ou seja, uma inversão no sentido oposto. Esta transformação é
incompleta e ambivalente: incompleta porque a passagem de Deus à imanência
terrena continua a ser inconsequente e a transcendência se mantém (daí também a
materialização apenas do “filho” e a sua
recuperação para o seio da transcendência através da “ascensão aos céus”); e
ambivalente
na medida em que a promessa da redenção total da eterna “culpa” está, ao mesmo
tempo, associada a um regresso, se bem que apenas simbólico, do sacrifício
humano arcaico, isto é, do Deus tornado Homem – tudo isto representado na
simbologia “canibal” da ceia com a carne e o sangue de Cristo. Este aspecto
criou repulsa e horror no mundo da Antiguidade tardia, devido à aparência de
regressão a uma crueldade
ritual arcaica, ao passo que a promessa de salvação a tal associada, por outro
lado, também exercia uma tremenda atracção.
Apesar de um
considerável esforço teológico, o mundo dito medieval não se conseguiu desfazer
desta inconsequência e ambivalência. A promessa conduziu apenas a uma
modificação histórica do ancoramento transcendente e das relações de obrigação
pessoais ou institucionais daí derivadas. No entanto, a constituição social
cristã continha um momento inicialmente ainda não libertado, apenas referido à
transcendência, que Marx designou como “culto do Homem abstracto” e como
pressuposto histórico ideal do
capitalismo. Por
detrás das representações pessoais terrenas que dantes, na imaginação, também
tinham continuidade no além, erguia-se agora a sombra de uma transcendente
“igualdade abstracta” das almas que, no plano terreno, também se aplicava à
realização sacral no “reino de Deus” virtual da Igreja, evidentemente sem tocar
na hierarquia pessoal das relações de reprodução.
Ora, o que
aconteceu, na história da constituição do capital, que afinal tivera início na
Europa cristã, a esta modificação contraditoriamente concebida das relações
sociais com Deus? Em primeiro lugar, a inversão cristã da relação do sacrifício
não foi anulada, mas mais uma vez invertida de forma paradoxal. Se o
cristianismo tinha transformado Deus num sacrifício[4]
humano, a fim de resolver a velha culpa no plano simbólico, pois agora o
sacrificado era elevado a quase-Deus. Mas isso não aconteceu, evidentemente, na
forma simbólica do corpo de Cristo, da hóstia da ceia (o que, em termos
terrenos, não teria feito qualquer sentido, nem sequer fetichista), mas na outra
forma que há mais de dois mil anos ia persistindo em paralelo, a forma da velha
objectualidade do sacrifício, a saber, o dinheiro na forma de moeda cunhada em
metal precioso que – contrariamente à hóstia, circunscrita ao serviço de Deus –
permitia efectuar todo o tipo de “pagamentos” periódicos ou
de circunstância
relativamente aos “deveres” ou às relações de obrigação do quotidiano. Em
segundo lugar, no quadro desta transformação do dinheiro num fim-em-si em
processo, pseudodivino, imanente e transcendental, o “homem
abstracto”, que até então não passava de algo vago e situado no além,
transmutou-se na “igualdade” terrena de um pessoal funcional aniquilador (prototipicamente,
no protestantismo, e logo formulado com maior profundidade e clareza na
ideologia iluminista).
A dupla transformação aqui delineada – por um lado, da
metálica objectualidade do sacrifício, que já no cristianismo perdera a sua
pátria sacral, no fim-em-si da “riqueza
abstracta”; e, por outro lado, do “homem
abstracto” transcendente no seu suporte funcional imanente – constitui um
contexto que poderia indicar o motivo pelo qual
Benjamin designou o
capitalismo como “parasita do cristianismo”. O capital nutre-se da constituição
cristã na medida em que, na sua própria, substitui numa paradoxal reviravolta o
homem divino, sacrificado terrenamente em nome da salvação, pelo dinheiro,
elevando este, ao mesmo tempo, do estatuto de sacrificado ao de uma
pseudodivindade imanente. Portanto, a cristã “ligação à terra” de Deus ao
sacrifício oferecido no aquém é explorada e reinterpretada de um modo quase
parasitário; e o mesmo se aplica à capitalista “ligação à terra” do “homem
abstracto” ao padronizado sujeito funcional moderno.
Mas o que acontece, nesta transformação, à “culpa” e à
promessa simbólica da salvação que, em termos terrenos, permaneceu por cumprir?
Como Benjamin
vê com clareza, esta última é suprimida sem apelo nem agravo
pela própria secularização da objectualidade do sacrifício na metafísica real
imanente da “riqueza
abstracta”. À possibilidade da salvação
circunscrita ao além substitui-se a perenização e absolutização terrena da
“culpa” que, por seu lado, passa por uma transmutação. As pessoas já não são
“devedoras” perante a divindade transcendente, à qual têm de fazer sacrifícios
no interesse da própria vida e sobrevivência, mas agora, ao inverso, ficam “em
dívida” face à própria objectualidade do sacrifício tornada apriorismo
transcendental. Este novo “dever”, por seu lado, não é representado a nível
pessoal em termos imediatos nem convertido nas relações de obrigação daí
derivadas, mas literalmente reificado. O Deus transcendente nunca andou por cá e
nada regulou enquanto tal; a reprodução era mediada pelas suas representações
pessoais. Já o dinheiro elevado a fim-em-si não só está aí de forma
palpável, como
também visivelmente regula, na sua
autonomia objectivada, a reprodução, ao
passo que as representações pessoais, por sua vez, já só podem ser os seus
funcionários, colocados num patamar secundário.
Para além disso,
porém, a nova relação do “dever” já não é simbólica, mas real sob a forma do
constrangimento ao dispêndio de energia de trabalho abstracta; e não se encontra
limitada à organização “dominical” de um evento sacrificial, cujos objectos as
pessoas (por exemplo, no caso dos sacrifícios animais e vegetais) ainda por cima
consumiam, elas próprias, num ambiente festivo, mas tornou-se uma relação
abrangente e vitaliciamente
totalitária de um permanente “pagamento pelo
trabalho”. Os seres humanos são agora, todos sem excepção, servos do fetiche
material do capital. Nesta medida, não podemos determinar a “dívida” como um
endividamento
meramente económico no sentido do crédito moderno, como Bolz faz de um modo
superficial. Em vez disso, trata-se de uma
submissão e auto-submissão compulsiva ao princípio do fim-em-si do “trabalho
abstracto” que começa a devorar o mundo da vida. Já não é o ser humano que
ingere ritualmente o objecto do sacrifício, cujo fumo ou cuja
objectualidade
simbólica e ideal apenas pertence aos deuses,
mas é o objecto do sacrifício
autonomizado que devora o ser humano, e
isto literalmente, no dispêndio quotidiano da sua energia vital, sobre cuja
finalidade já não tem controlo. Os seres humanos fizeram de si próprios vítimas
da objectualidade do sacrifício.
Na realidade, o
que agora está em causa é o regresso do arcaico sacrifício humano, mas
justamente numa nova forma reificada. O sacrifício e o auto-sacrifício não só é
permanente e abrangente, em vez de limitado aos dias feriados como antes, mas
também já não constitui um acto de expiação temporária e parcial, como Benjamin
assinalou com perspicácia. Em vez disso, cada
acto quotidiano de auto-sacrifício de energia vital abstracta constitui nova e
adicional “dívida” até à eternidade, para permitir a acumulação desmedida de “riqueza
abstracta” num patamar cada vez mais elevado. É
a falta de escrúpulos e insaciabilidade absoluta do movimento de fim-em-si
capitalista que Marx determinou em termos conceptuais e descreveu de forma
exacta, mesmo que ainda não fosse capaz de reconhecer as suas verdadeiras
origens (embora se aproximasse desta compreensão com o conceito crítico de
fetiche). A promessa cristã transcendente da uma remissão definitiva e não
apenas temporária da “culpa” foi pervertida na totalização imanente e
transcendental de uma “dívida” terrena pura e simplesmente impossível de expiar.
O cristão “pecado original” da humanidade, somente expiado no além por Jesus
Cristo, e evidentemente apenas para os crentes da própria facção, transformou-se
na suspeição geral secularizada de uma inata falta física e mental de vontade de
trabalhar, a fim de justificar a edificação do inferno capitalista à face da
Terra. Já adoecer é pecado, tal como qualquer outra necessidade que possa
significar um desconto do sacrifício de energia vital abstracta e, ao mesmo
tempo, real.
Aparelhos de
Estado, gestão de empresas, administração do trabalho, etc., e sobretudo toda a
estrutura institucional da relação do capital disponibilizam o pessoal de
execução e, digamos sem rodeios, os torcionários para o movimento do sacrifício
terreno que tomou o freio nos dentes. E aqui não se trata apenas do sacrifício
optimizado de energia vital e da preparação ou amestragem, pela terapia
ocupacional, das pessoas momentaneamente não abrangíveis para se manterem
preparadas, sendo entretanto, de preferência, colocadas no mínimo existencial
para sentirem a “dívida” por pagar de uma forma drástica. Pelo contrário, nas
situações de crise, quando a própria mecânica interna da relação do sacrifício
torna objectivamente impossível a demasiadas pessoas o auto-sacrifício
voluntário da energia vital, sob a forma da energia “de trabalho”, em prol da
objectualidade do sacrifício autonomizada, também se reconstitui o literal
sacrifício humano no seu verdadeiro sentido arcaico, sob a forma da instalação
de uma maquinaria de morte.
Isto pode
acontecer de três modos: primeiro, como agudização da relação do sacrifício
objectivada, na medida em que as pessoas vêem o seu acesso vedado a cada vez
mais fontes da reprodução; em segundo lugar, sob a forma da guerra e da guerra
civil industrializada; e, em terceiro lugar, como assassínio directamente
organizado de material humano já não valorizável no âmbito de um “estado de
excepção”, apoiado em legislação excepcional de
todo o
tipo. Ninguém o admitirá, mas a terminologia nazi da “vida indigna de viver”
exprime um programa geral sub-reptício do movimento do sacrifício, que se
prolonga até ao âmago da representação liberal e social-democrata.
Embora todos os
recursos humanos e materiais estejam disponíveis, partes crescentes da população
mundial vêem cerceadas e negadas as condições de vida mais elementares. Até os
magros e vergonhosos fornecimentos de ajuda material a zonas de fome e de
catástrofe têm de passar pelo buraco da agulha da “financiabilidade” e fracassar
nesse empreendimento, por não alcançarem o volume necessário. É pelo mesmo
motivo que, nos centros capitalistas, surgem dificuldades no acesso das camadas
sociais mais baixas aos cuidados médicos; estes são economicizados e cobertos de
restrições, aceitando-se como inevitáveis sofrimentos e mortes tão prematuros
quão desnecessários. A administração
democrática das pessoas converte-se numa burocracia de morte e decide sobre o
“valor da vida” do material humano, de acordo com a sua utilidade ou inutilidade
prática para o moribundo fetiche do capital.
Nas sociedades
religiosas pré-modernas, embora as necessidades vitais também estivessem
condicionadas pela ressalva de realizações sacrais e relações de representação
pessoal, as restrições materiais associadas sempre foram meramente parciais e
externalizadas (nos tributos “em dívida”, temporal e localmente circunscritos à
relação com Deus, como relação de sacrifício simbólica). Sob a dominação do
fetiche do capital, pelo contrário, as necessidades vitais estão absolutamente
subordinadas à reserva do movimento totalitário do sacrifício, enquanto
acumulação de “riqueza
abstracta” como fim-em-si. Isto, no entanto,
significa que, em princípio, as restrições materiais podem tornar-se totais, o
que também afecta periodicamente, na realidade, grandes massas de seres humanos.
É um facto que, nas levas da expansão interna e
externa do capital, esta consequência se manifestou repetidamente por breves
espaços de tempo, mas sempre foi encoberta pela reabsorção de “energia
sacrificial”, na realização continuada do movimento do sacrifício num patamar
mais elevado. O desenvolvimento das forças produtivas a tal associado, que
sempre teve de ser, ao mesmo tempo, um desenvolvimento de forças destrutivas,
foi instrumentalizado para a justificação ideológica no sentido de um suposto
“aumento do bem-estar”. Na realidade, isso sempre disse respeito apenas a uma
minoria global mas, também no seu caso, de um modo temporário e, naturalmente,
sob reserva da capacidade máxima de sacrifício da própria energia vital.
No entanto, e
como já demonstrámos,
é o mesmo desenvolvimento das forças
produtivas forçado pelo mecanismo da concorrência que
acaba por paralisar a máquina capitalista do sacrifício. Ora, nas imediações
deste limite interno do fetiche do capital, a transcendental relação do
sacrifício enquanto tal já não pode ser escamoteada. A afirmação ideológica,
segundo a qual as
restrições materiais e sociais se devem a uma real “penúria” material de
recursos (naturais e humanos), é exposta em toda a sua
falta de veracidade numa altura em que a
administração capitalista do sacrifício como administração da crise desafecta
recursos materiais e sociais de todo o tipo, alguns dos quais vitais, numa
extensão crescente, visto os mesmos já não estarem em
condições de servir o fim-em-si da “riqueza abstracta”, ou seja, não serem
capazes de canalizar para o sacrifício uma quantidade suficiente de energia de
trabalho. Deste modo fica definitivamente patente o
irracional
carácter fetichista da relação social.
Só neste ponto se
torna também evidente o carácter modificado da “dívida” secundária no sentido do
endividamento económico (crédito). Se o sistema de crédito gerava “investimentos
para o futuro”, como diz Bolz em termos elogiosos, tal acontecia unicamente no
sentido de um sacrifício futuro de energia humana ao fetiche do capital, ou
seja, à objectualidade do valor autonomizada e pseudodivinizada. O segundo plano
da “dívida” no sentido do movimento do sacrifício, porém, vem a ser o crédito,
se o sacrifício futuro de energia humana por ele antecipado já não puder ser
cobrado em termos reais. O que já foi apresentado na habitual terminologia
económica adquire, pela decifragem do contexto
de sentido transcendental subjacente, um significado medonho: o ídolo, o “sujeito
automático”, foi ludibriado pelo sistema
financeiro e vinga-se terrivelmente na sociedade, paralisando a reprodução da
sua vida real com abalos sucessivos.
Esta viragem do
movimento do sacrifício reificado da energia vital humana capitalizada para o
literal sacrifício de possibilidades de vida e da própria vida humana
processa-se, uma vez mais, não de uma forma homogénea, mas por levas,
selectivamente, em determinadas áreas, de um modo escalonado tanto no tempo como
no espaço e distribuído por diversas categorias sociais. Acresce que a
democratização da crise exige o estatuto de sacrifício interiorizado do sujeito
moderno, que nele toma consciência de si
próprio; e o
auto-abandono voluntário em nome do
fetiche do capital, por falta de capacidade de sacrifício de energia vital e de
trabalho, constitui a derradeira glória do autocontrolo capitalista e da sua
loucura de exequibilidade. O restabelecimento das estruturas arcaicas do
sacrifício humano, porém, não é um simples regresso, mas, como qualquer
regressão, é tanto mais horrível quanto não é capaz de repousar em si mesma como
estado, mas ocorre a um nível há muito afastado da origem como mutilação e
destruição sem perspectiva.
Mas a regressão no
terreno do fetiche do capital, já incapaz de se reproduzir também, significa que
um crescimento
desordenado e “asselvajamento” (Roswitha Scholz) do patriarcado moderno, da
relação de dissociação sexual, abre caminho nas relações do sacrifício. O
regresso do sacrifício humano imediato na economia de crise traz ainda a marca
da dissociação sexual, ou seja, da estrutura
moderna da subjectividade androcêntrica que, na sua decomposição, reconstitui ao
mesmo tempo a “feminilidade” como “matéria-prima” “sobre cujo sacrifício também
a nossa civilização está edificada” (Kurnitzky 1994, p. 61). Isto é o fim da
ilusão pós-moderna de um nivelamento da assimetria entre os sexos inscrita nas
formas básicas do fetiche do capital. O próprio androginismo
superficial pós-moderno revela-se uma brutalização
da estrutura não suplantada da dissociação, não
só nas neuroses compulsivas dos fascistas religiosos, mas também nos modos de
reacção da masculinidade encapuçada, economificada e orientada para a
concorrência. É nisto que também transparece o carácter ideológico e afirmativo
da celebração, por Kurnitzky, de uma base de mercado
construída sem alicerces que, ainda assim, também segundo ele assenta em
estruturas de sacrifício e, em especial, no
sacrifício do objecto passional
feminino. A regressão da estrutura
reificada da dissociação provoca directamente a vontade de uma reconciliação
desesperada com o fetiche do capital através do sacrifício
primário de “carne feminina” no
seu imundo altar.
Quem ainda disser que o fetiche do
capital e a “razão” que lhe é imanente constituíram um progresso positivo na
história da humanidade (é o caso dos idealistas da troca, como idiotas
históricos da ideologia iluminista) tem de ser designado, nas condições do
século XXI, como um demente pós-religioso que nada fica a dever aos dementes
pseudo-religiosos desta época. Esta razão é fundamentalmente destruída
na sua própria consequência histórica. O estado de emergência da paradoxal
relação de sacrifício moderna, que no passado se foi manifestando
periodicamente, já se tornou o estado normal para a maioria na sociedade global
do início do século XXI e, passo a passo, vai forçando a entrada nos centros
capitalistas. Vai-se afirmando até às entranhas da esquerda uma identificação
irracional e apavorada com a subjacente relação de sacrifício, porque as pessoas
foram educadas nestas categorias também em termos intelectuais e recalcaram o
“outro” Marx da crítica radical do sistema da “riqueza
abstracta”.
A fuga para a co-administração da crise
só pode conduzir à cumplicidade com o sacrifício humano reificado e, por fim,
com a sua execução consciente – já não como sacrifício da energia de trabalho
abstractificada até que o material humano, chupado até ao tutano, caia morto,
mas, depois de este constrangimento se tornar
objectivamente obsoleto, apenas sob a forma de
uma “eutanásia” burocrática, para as massas dos já não utilizáveis em termos
capitalistas, que tem de assumir traços anómicos.
Depois de o dinheiro ter sofrido uma mutação, convertendo-se de sacrifício
simbólico na objectualidade universal do valor no sistema do “trabalho
abstracto”, o “dinheiro sem valor”, sobre esta base desvalorizada e
dessubstanciada, faz agora regressar condições quase arcaicas que, no entanto,
já não se inserem num ritual que se
desenrola dentro de determinadas balizas, mas desembocam no quadro de uma
carnificina desnorteada e num recuo da civilização. Se as metamorfoses do
dinheiro, do sacrifício humano até à
objectualidade simbólica
de substituição, constituíram um processo civilizacional
parcial no terreno de relações de fetiche não ultrapassadas, o fetiche do
capital pôs em marcha um movimento de sacrifício reificado cujo resultado acaba
por revogar todos os elementos civilizacionais da história humana anterior. Os
sanguinários sacerdotes dos astecas eram inofensivos e amigáveis em comparação
com os burocratas do sacrifício ao fetiche do
capital global no seu limite interno histórico.
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[1]Como
se verá nas próximas páginas, o termo alemão aqui usado, Verschuldung,
pode significar tanto “culpabilização” como “endividamento”. De forma
análoga, a sua raiz Schuld significa, conforme o contexto,
“culpa” ou “dívida”. Outro tanto se aplica às suas diversas formas
derivadas. (N. do T.)
[2]A
saber, o “endividamento”. (N. do T.)
[3]Cf.
nota 6. (N. do T.)
[4]Convém
referir aqui que a palavra alemã Opfer, para além de
“sacrifício”, tem também o sentido de “vítima”. (N. do T.)
Original Robert
Kurz, Geld ohne Wert - Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der
politischen Ökonomie in www.exit-online.org,
14/05/2012