CRISE E CRÍTICA
O limite interno do capital e as fases do definhamento do
marxismo.
Um fragmento. Primeira parte
Nota prévia editorial: Em 10 de Fevereiro de
2010 Robert Kurz enviou à então redacção da EXIT! por email um texto com as
seguintes palavras: “Junto a primeira parte do projecto de livro mais pequeno Crise e Crítica destacado do anterior
projecto Trabalho Morto, para
discussão no próximo encontro. Poderá ser retirado do prefácio e da introdução
tudo o que for considerado necessário”. Após o referido encontro o texto foi
objecto de pequenos acertos de redacção e não foi mais modificado desde Maio de
2010.
Como ele explica no prefácio ao seu último
livro, Dinheiro sem Valor, Robert
Kurz tinha decidido fazer uma série de livros a partir do projecto original do
livro de grande dimensão Trabalho Morto.
O único que ele ainda pôde realmente terminar foi Dinheiro Sem Valor, que apareceu nas livrarias poucos dias após a
sua morte. Crise e Crítica teria sido
outro livro desta série. Dos 36 capítulos previstos – incluído Introdução e
Epílogo – Robert Kurz só teve tempo de escrever 10, dos quais se apresenta de
seguida a Introdução e os capítulos 1 a 4, ficando os capítulos 5 a 9 para a
EXIT! nº 11.
Prefácio * Introdução * 1. A teoria da crise na história
do marxismo * 2. O capital vai muito bem. Ignorância situacionista da crise como
falta da dimensão histórica do tempo * 3. Mitologização da teoria do colapso *
4. Os cavaleiros do apocalipse *
5. Psicologismo para pobres * 6. Será o capitalismo
criticável apenas por falta de funcionalidade? * 7. Crise e emancipação social
* 8. Excurso: a dissociação-valor faz do fetiche o criador de um mundo de
marionetas? * 9. A crise como relação subjectiva de vontade
Mais capítulos
previstos mas já não escritos:
10. O capitalismo
como eterno retorno do mesmo * 11. Empirismo histórico: a admirável
flexibilidade da lógica da valorização * 12. Regresso à má normalidade? * 13. A
crise como mera “função de ajustamento” das contradições da circulação *14. Excurso:
o enfraquecimento e abandono parcial “críticos do valor” da teoria radical da
crise * 15. Sempre de novo o “problema da realização” * 16. A crise tem de ser
pequena ou grande? O conceito reduzido de sistema * 17. A caminho do
biocapitalismo? * 18. Reducionismo ecológico * 19. Capacidade de sobrevivência
do capital individual ou um capitalismo de minoria? * 20. O carácter da
economia pós-moderna das bolhas financeiras * 21. Excurso: crítica redutora do
mercado financeiro, anti-americanismo e anti-semitismo estrutural * 22. A
última instância ou a crença no milagre do Estado * 23. A ilusão democrática * 24.
A questão da propriedade equivocadamente colocada * 25. Keynesianismo de
esquerda ou a redução da teoria do subconsumo * 26. A guerra como solução para
a crise? * 27. Será que a crise apenas desloca as relações globais de poder? * 28.
O sexo da crise * 29. O fracasso na crítica categorial * 30. Síntese social e
socialismo * 31. Excurso: “Forma embrionária” – um mal-entendido grave * 32.
Quem não é mediador? Critérios da imanência sindical * 33. Carnaval de “lutas”
e pacifismo social da ideologia da alternativa * 34. Como Herr Biedermeier (a)
gostaria de tornar tudo bom * Epílogo
Prefácio
Desde o Outono de
2008 que toda a gente fala de uma “crise secular” do capitalismo. Mesmo se o
seu desenvolvimento ou ponto de partida não estão de modo nenhum bem
estabelecidos e se as primeiras expressões de um verdadeiro pânico há muito
foram novamente misturadas com mensagens de confiança baseadas no curtíssimo
prazo, mesmo assim uma coisa parece clara: o abalo económico global aponta para
um contexto causal profundo até aqui escondido. Representa um corte qualitativo,
em paralelismo fatal com o colapso do socialismo de Estado 20 anos antes. Tal
como então, do novo “fim de uma época” sairá um mundo profundamente modificado
e tudo menos estável.
Nesta nova situação
histórica, a teoria de Marx, já declarada morta repetidas vezes, ganha uma
inesperada actualidade; e naturalmente em particular a teoria da crise. No
entanto não se pode aqui recorrer a qualquer fundo seguro. A obra de Marx, numa
multiplicidade de textos heterogéneos, atravessou uma história de
interpretações ou “versões”, sempre mediada com a história do capitalismo e dos
movimentos sociais surgidos nos diferentes níveis de desenvolvimento. Cada “fim
de uma época” neste processo global exige um corte na interpretação teórica e
no posterior desenvolvimento da teoria. Isto aplica-se também à teoria da
crise. Por isso a nova crise económica mundial depara com um mosaico intrincado
no campo de debate em torno da teoria de Marx que exige um processo de
esclarecimento. O que não se consegue sem um conflito teórico, em que os diferentes
padrões de interpretação se confrontem a fim de serem sintetizados e explicados
na sua condicionalidade histórica.
O texto aqui
apresentado está no contexto de uma elaboração teórica que desde os anos de
1980 procura reformular a crítica da economia política e tem assumido uma
posição destacada justamente na teoria da crise. Esta abordagem teórica
apresentou-se inicialmente com o rótulo de “crítica do valor”. Assim se faz
referência às numerosas passagens de Marx que definem o capitalismo fundamentalmente
como “o modo de produção baseado no valor”. Daí se conclui que a crítica do
capitalismo só pode ser crítica radical do valor; ou seja, uma crítica e
suplantação teóricas e em perspectiva práticas do contexto basilar formal e
funcional deste modo de produção e de vida, tal como ele se apresenta nas
categorias do trabalho abstracto, da forma do valor e da mercadoria, do
dinheiro, do capital (valorização do valor como “sujeito automático”), do
mercado e do Estado, contexto esse que foi definido por Marx como uma relação
fetichista autonomizada face aos actores sociais.
Esta reinterpretação
concebe-se como ruptura com o “marxismo do movimento operário” e seus derivados
históricos; um entendimento da teoria de Marx que sempre se moveu “para” estas
categorias. Tendo por pano de fundo uma reinterpretação do trabalho abstracto
como condição humana positiva e trans-histórica, o contexto formal basilar
surgia cada vez mais como pressuposto neutro e ontológico da socialidade em
geral; até a pretensa suplantação do capitalismo era ainda pensada nas suas
próprias categorias, como a mera estatização, comando e moderação destas,
situação em que a diferença essencial surgia como a “da classe social”
(“libertação do trabalho” em vez da suplantação desta abstracção real
capitalista, “Estado dos trabalhadores” etc.). Esta referência truncada a Marx
era historicamente condicionada pelo desenvolvimento inacabado e
“dessincronizado” do próprio capitalismo. Podemos decifrá-la como “luta pelo
reconhecimento” no terreno das categorias capitalistas no decurso da
“modernização atrasada”; e isto tanto da parte do movimento operário ocidental,
no sentido do seu reconhecimento como sujeito jurídico burguês e cidadão,
quanto da parte das revoluções da modernização atrasada dos países da periferia
capitalista, no sentido do seu reconhecimento como participantes em igualdade
de direitos e independentes no mercado mundial.
Estes pontos
essenciais da crítica do valor constituem um campo de debate com as posições a
seguir designadas como “marxismo residual” e “pós-marxismo”, que em parte
mantêm o velho entendimento e em parte o dissolvem simplesmente em diversas
direcções sem o ultrapassarem realmente. Aqui se incluem a esquerda política em
sentido estrito, bem como a “nova ortodoxia” académica que surgiu do esforço
filológico pela “reconstrução” da teoria de Marx nos anos de 1970 e, não em
último lugar, a ideologia do movimento dos tempos mais recentes, no essencial
inimiga da teoria, aferida pela falsa imediatidade e fenomenologicamente
limitada na sua percepção, em que a crítica da economia política leva uma
existência já apenas de sombra. Um papel especial desempenha aqui o pós-operaismo
de Antonio Negri, que reinterpretou de modo próprio o marxismo do movimento
operário numa versão pós-moderna, na qual o trabalho abstracto e a forma do
valor são positivamente “virtualizados” em vez de se criticar radicalmente este
contexto.
Nos anos de 1990 a
crítica do valor começou por se alargar para lá da tematização do contexto da
forma da economia política e isto em três aspectos. Em primeiro lugar, a teoria
da dissociação sexual de Roswitha Scholz (1992, 2000) forneceu uma modificação
decisiva, em que a moderna relação de género já não surge como “contradição
secundária derivada”, mas como determinação real fundamental da moderna
constituição de fetiche. No capitalismo, os momentos da reprodução não
absorvidos no sistema do trabalho abstracto e da valorização do valor, ou seja,
insusceptíveis de representação ou só dificilmente representáveis na forma do
dinheiro, são dissociados da socialidade oficial, historicamente delegados nas
mulheres e definidos como inferiores. Nesse sentido a relação de dissociação
sexual é “igualmente original” e sediada no mesmo plano de abstracção que as
categorias funcionais vigentes, justamente porque constitui o seu reverso
“obscuro”. Este contexto foi negligenciado e omitido tanto pelo marxismo do
movimento operário e seus derivados como também pelo feminismo recente (apesar
as suas pesquisas meritórias). Uma vez que a crítica do valor assumiu esta
determinação essencial reprimida, ela alargou-se a crítica da dissociação-valor.
O carácter pesado deste termo duplo aponta para o problema de exprimir sequer
este contexto na linguagem conceptual da razão burguesa, a partir da qual tem
de ser primeiramente elaborado um novo entendimento da crítica categorial.
Em segundo lugar, o
assumir desta dimensão levou não por acaso a uma crítica radical e consequente
historicização da moderna razão iluminista (incluindo o seu contrapolo imanente
irracionalista) que apenas sintetiza conceptualmente a relação geral mundial
desta constituição de fetiche no sentido de um universalismo androcêntrico.
Aqui se inclui também a crítica do “sujeito” da forma de pensar e de agir
socialmente abrangente, como “forma de execução” e simultaneamente como “forma
de digestão” ideológica da socialização negativa através do capital, que
justamente a partir de si estabelece a objectivação destrutiva do mundo e a
auto-objectivação repressiva dos homens (Kurz 1993). De certa maneira aqui
também entram no campo de visão os fundamentos das ciências naturais modernas
(Ortlieb, 1998); não, porém, como banal “crítica das forças produtivas”, mas
sim como reflexão sobre a conexão interna do moderno padrão de pensamento das
ciências matemáticas da natureza com a lógica abstracta do “trabalho” e da
valorização e com a relação de dissociação sexual.
Em terceiro lugar,
perante o pano de fundo desta historicização da razão androcêntrica e da forma
de sujeito, também a questão da crítica da ideologia pôde ser determinada na
sua importância para a nova elaboração teórica. Segundo Marx, as categorias
capitalistas são não só “formas objectivas de existência” mas também “formas
objectivas de pensamento”. Nesta base ocorre uma elaboração ideológica, por
natureza afirmativa e destrutiva; não porém como “reflexo” automático, mas sim
como contribuição própria da consciência que processa de forma positivista e
auto-afirmativa as suas condições de existência, contribuição essa que entra
também na dinâmica objectivada do desenvolvimento capitalista e das suas formas
concretas de desenvolvimento. A crítica da relação de fetiche não pode ser
reduzida à crítica da ideologia (o que escamotearia o lado objectivado), mas
esta tem de constituir um elemento integrante da crítica da relação social (vd.
Scholz 2005, Gruppe EXIT 2007).
A teoria crítica da
dissociação-valor ergue assim, contra qualquer reducionismo a um campo individual,
a pretensão de uma paradigmática reformulação abrangente da crítica social
radical que de modo nenhum está fechada nem pode ser entendida como susceptível
de ser fechada. A teoria da crise desempenhou aqui desde o início um papel
decisivo. Neste sentido a crítica da dissociação-valor entende-se não como reinterpretação
filológica a-histórica, mas sim como expressão teórica do limite interno
absoluto da relação de fetiche capitalista que no fim do século XX entrou no
campo de visão; e isto tanto relativamente ao seu contexto formal
político-económico, como também relativamente à relação de dissociação sexual,
bem como à razão iluminista burguesa e seus derivados.
É justamente esta
faceta da teoria da crise que assume um papel central no campo de debate com o
marxismo residual e o pós-marxismo. Formou-se aqui uma oposição não só com a
“ortodoxia recente” e com o pós-operaismo, mas também com a reformulação
académica da teoria de Marx que se apresenta como Nova Leitura de Marx, a qual
também pretende uma reorientação paradigmática, contudo posicionada de forma completamente
diferente. O que acaba por se expressar de modo particularmente forte na teoria
da crise que no conjunto dos seus fundamentos e pressupostos é interpretada de
forma exactamente inversa. Isto aplica-se explicitamente em primeiro lugar à
posição de Michael Heinrich (2003, 2004) que assumiu posição de destaque na
esquerda.
A Nova Leitura de
Marx também surge como referência justamente no que respeita à teoria da crise
junto dos chamados “anti-alemães”, que em grande parte entendem a sua posição como
“ortodoxia de Adorno”, sendo que eles próprios nunca apresentaram qualquer
espécie de nova interpretação sobre o entendimento da crítica marxiana da
economia política no sentido da análise categorial. O que para eles é
considerado “crítica do valor anti-alemã” move-se apenas no domínio da digestão
ideológica, sem recorrer ao lado objectivado da dinâmica capitalista; e de
facto concluindo com a declaração de que o capitalismo, como afirmação da razão
iluminista burguesa androcêntrica, é afinal um “mal menor” face à barbárie
externalizada.
Todavia o campo de
debate diferenciou-se também através da cisão da própria crítica do valor a
partir de 2003/2004. Depois de conflitos violentos que acabaram com a completa
ruptura, uma parte do anterior contexto da crítica do valor em torno da revista
Krisis e da Streifzüge de Viena passou-se para uma posição teoricamente
regressiva. A teoria da dissociação sexual foi em parte ignorada, em parte
abertamente rejeitada e em parte objecto da tentativa de incorporação num
entendimento da socialização androcentricamente universalista. Esta regressão
está ligada com uma “orientação para a práxis” de vistas curtas, com uma
aproximação oportunista ao empreendedorismo dos círculos de esquerda e com o
rebaixamento da crítica do valor a uma fútil ideologia da alternativa
reformadora da vida, que passa ao lado do problema da síntese social e tomou o
lugar da continuação do desenvolvimento teórico. Aqui também a teoria da crise,
incluindo a crítica do trabalho, se tornou pouco profunda e foi reduzida ao
aspecto fenomenológico. (1)
Ora, o próprio
desenvolvimento social, com a ruptura qualitativamente nova e secular da economia
mundial, é que colocou inapelavelmente na ordem do dia da crítica radical do
capitalismo as contradições na teoria da crise. Após a sua primeira formulação
no fim dos anos de 1980, a teoria da crise da crítica da dissociação-valor
surgiu sobretudo na forma de análises concretas do colapso do socialismo real
(Kurz 1991) e da história das três revoluções industriais (Kurz 1999). Estava e
continua a estar em atraso a continuação do desenvolvimento desta teoria da
crise no plano da determinação das categorias marxianas da relação de capital
na sua dinâmica histórica. Uma primeira abordagem já foi feita num texto de
debate em torno do conceito de mais-valia relativa (Ortlieb 2009). A esta
tarefa deve ser também imputado um projecto de livro já anunciado com o título Trabalho morto. A substância do capital e a
teoria da crise de Karl Marx. A sua elaboração atrasou-se, não só sob a
pressão das solicitações e dos debates actuais, mas também por razões de
conteúdo. Tornou-se evidente que as questões conceptuais, de teoria da história
e epistemológicas ligadas com a teoria da crise categorial (e justamente por
isso também radical) não podem ser enquadradas num projecto único. Ou, se o
forem, será a custa de uma exposição global inflada, de difícil acesso para um
público já não habituado ao desdobramento de uma arquitectura teórica extensa.
Um capítulo do
projecto de livro Trabalho Morto
estava previsto para expor o estado da reflexão sobre a teoria da crise no
marxismo residual e no pós-marxismo, bem como o debate em torno da nova teoria
da crise da crítica da dissociação e do valor desde o início dos anos de 1990.
Este capítulo, no entanto, tinha extravasado o quadro do projecto, pois
torna-se necessário tratar uma multiplicidade de padrões de argumentação, que
surgem em planos completamente diferentes e mostram como o problema da crise é
filtrado na percepção da consciência “crítica” por arraigados preconceitos
ideológicos e teóricos, por avaliações do movimento superficial capitalista ou
das respectivas “conjunturas” e por um obsoleto entendimento de fundo da
história e da práxis social. Esta grelha de percepção cerca o problema da crise
como uma muralha, para atravessar a qual é preciso combater a fim de chegar ao
cerne da análise categorial. O correspondente capítulo de Trabalho Morto é agora aqui apresentado em separado como publicação
autónoma com o título Crise e Crítica. Pode
ser entendido como propedêutica à
teoria da crise e à crítica categorial, que em 34 curtos capítulos revê o
estado actual da reflexão sobre o tema à luz da crise económica mundial real
surgida.
Introdução
O ano de 2009 ficará
na história como tão marcante quanto o de 1929. Quase exactamente oito décadas
após o começo da catástrofe económica do período entre guerras, gravada na memória
colectiva, a maior ruptura até então no desenvolvimento capitalista, começou
uma nova crise económica mundial. O seu desenvolvimento ulterior e as suas consequências
ainda são empiricamente imprevisíveis, mas ela já é considerada como um corte histórico
na ciência económica e na ciência social oficiais; pelo menos como grande
ruptura estrutural, com uma necessidade ainda indefinida e controversa de
revolucionamentos político-económicos que, mesmo na perspectiva de um
pensamento puramente afirmativo, limitado às medidas de reparação, tem de ultrapassar
o entendimento anterior. Embora o processo de crise também neste nível
qualitativamente novo se desenvolva de forma desigual e a primeira queda a
pique tenha sido travada de início para uma fase transitória mais de estagnação
após as mega-intervenções estatais, de modo nenhum se pode falar em controle do
complexo causal da reprodução do capital mundial. Por isso também a comparação feita
a medo com os anos de 1930 de modo nenhum é descabida, pelo contrário, é
intuitivamente adequada à situação real.
No tempo histórico 80
anos são um curto lapso de tempo. Para a experiência dos contemporâneos, no
entanto, parece tratar-se de épocas muito afastadas. A crise económica mundial
de 1929/33, a barbárie nacional-socialista, a II Guerra Mundial e Auschwitz, o
“milagre económico” do pós-guerra, a nova pobreza após o fim do mesmo nos anos
de 1970 e a globalização pós-moderna desde então – este processo histórico no
seu conjunto constitui para os nascidos no seu decurso relações de passado e
presente percebidas “imediatamente” de modo diferente. No entanto ainda vivem
pessoas que já passaram pela anterior grande crise económica mundial em
crianças e que agora já idosas são atingidas pelo regresso do terramoto económico
mundial. Se o processo global que abrange as épocas não atinge mais que a vida
de uma pessoa, então também as épocas já não são aquilo que eram.
Os dois pólos das
crises económicas mundiais de 1929 e 2009 estão tão próximos no tempo histórico
que em perspectiva surgirão possivelmente como uma única grande catástrofe
capitalista, em que o “verão curto” da prosperidade do pós-guerra terá apenas o
estatuto de uma nota de rodapé. Embora na percepção do momento presente isso
não seja ainda visível hoje, o drama da grande crise entre guerras poderá
surgir como fase preliminar de um processo de crise qualitativamente novo que,
após o período de incubação da II Guerra Mundial e do “milagre económico,
começou desde o fim do século XX num escalão muito mais elevado de socialização
mundial negativa e, por isso, na base de um contexto de encadeamento global
correspondentemente mais denso, também marca um corte mais profundo de outra
dimensão, que já não permite qualquer renovação e prosseguimento sustentáveis
do processo de valorização global.
Nesta situação a
questão da teoria crítica do capitalismo de Marx e dos seus epígonos já não se
coloca num plano meramente filológico de interpretação. Uma “entomologia”
marxológica, que não esclarece nada porque não levanta qualquer questão social
candente nem pretende ir a lado nenhum, já não pode ser levada a sério. (2) O
tempo da acrobacia intelectual sem conteúdo sócio-histórico está tão
ultrapassado como inversamente o tempo de um contar feijões positivista a-conceptual
que se imagina poder jogar “factos” descontextualizados contra a determinação
categorial. A alternativa não está no praticismo inimigo da teoria dos turistas
das manifestações, nem nos pescadores politicistas de pessoas ou nos etno-populistas
da “idiotice da vida quotidiana”, mas sim um confronto teórico com a
“totalidade concreta” (sobre isso ver com mais detalhe Scholz 2009) ao nível do
século XXI, através do qual os fenómenos sociais reais são analisados e que
constitui o pressuposto para poder renovar a crítica radical prática das
relações capitalistas fetichistas num contramovimento social. (3)
Exige-se, portanto,
uma determinação e esclarecimento teóricos do novo capitalismo global de crise
em que os anteriores padrões de interpretação têm de mostrar o que valem. Como
é sabido, a elaboração teórica aqui representada da crítica da
dissociação-valor já há mais de 20 anos desenvolveu e procurou fundamentar a
tese de um limite interno absoluto da valorização que historicamente entra no
campo de visão na terceira revolução industrial da microelectrónica. A
discussão sobre isso desempenhou um certo papel nos anos de 1990 e certos
momentos da nova elaboração teórica penetraram nas discussões da crítica
social. Mas na maior parte dos casos a discussão foi conduzida contrariadamente
e o mais possível de passagem justamente pelos porta-vozes das antigas
correntes e escolas de esquerda; e sempre com o propósito de que esta nova
formulação da teoria da crise de Marx, vivenciada como tão estranha quanto
incompatível com o “ser de esquerda”, fosse se não liquidada (o que
inicialmente foi tentado), pelo menos arredada do discurso “crítico do
capitalismo”. Para a maioria da esquerda de orientação tradicional ou
pós-moderna ela era considerada quase como assunto arrumado pouco antes do novo
grande desabar da crise.
Esta factualidade
carece ela própria de explicação. Ela aponta para o estatuto do marxismo na
história do capitalismo. Decisivo aqui é, por um lado, o problema do horizonte
de percepção e da sua amplitude. A questão é saber se e em que medida as
interpretações da teoria de Marx poderão referir-se à dimensão do tempo
histórico no desenvolvimento capitalista global, ou se e em que medida devem
ser mantidas no processo interno da história de cada desenvolvimento e
acontecimento com horizonte temporal reduzido. Por outro lado, este problema de
percepção está mediado com o entendimento da relação entre crise e crítica, que
se apresenta como dialéctica capitalista sujeito-objecto e (justamente também
na sociologia burguesa) se apresenta como dualismo entre teoria da estrutura e
teoria da acção. Já no fim dos anos de 1920 Bertold Brecht e Walter Benjamin
planearam a edição de uma revista com título Crise e Crítica que então não chegou a materializar-se. O problema
abordado por este título nunca largou a esquerda inspirada pela teoria de Marx.
Este contexto vai ser
abordado de seguida de forma não exaustiva, mas sim exposto na discussão havida
desde os anos de 1990 em torno da nova teoria radical da crise da crítica da
dissociação-valor, bem como do padrão de percepção e interpretação de esquerda da
nova crise económica mundial. Neste aspecto só agora se embateu nela, perante o
desenvolvimento real da crise económica mundial “amadurecida” da terceira
revolução industrial. Por isso é preciso radiografar em perspetiva, em termos
de crítica da ideologia, o cânone de figuras de argumentação acumulado em duas
décadas contra esta posição, e também caracterizar como na actual esquerda já
apenas se podem encontrar as ruínas do antigo debate marxista sobre a teoria da
crise e da acumulação. (4) Essa é a condição para apurar e desenvolver o
instrumental da nova teoria da crise.
Aqui também tem uma
certa importância o tempo histórico no estreito horizonte do discurso teórico
de esquerda desde o fim de uma época em 1989, cujo prosseguimento no plano do
mercado mundial justamente presenciamos. A geração hoje ocupada com a conclusão
do curso superior ou apenas simplesmente a entrar na idade adulta em grande
parte nem sequer conhece as discussões sobre a teoria radical da crise nos anos
de 1990 e na passagem do século, as argumentações e polémicas com que ela era
então elaborada. Tanto mais se afigura necessário trazer à memória a história
desses debates recentes, porque deste modo se torna claro tanto o carácter do
modo de pensar ajustado ao entendimento do capitalismo e do seu potencial de
crise quanto a essência das oposições teóricas (5). O não resolvido exige o seu
direito e ninguém pode proceder como se não tivesse havido uma corrida
eliminatória discursiva involuntária e desagradável que foi mergulhada numa
nova luz pelo desenvolvimento real.
Os adversários da
teoria radical da crise talvez gostassem de não ser recordados agora de algumas
coisas por si expostas em sentido contrário, embora procurem se afastar delas com
rapidez perante a alteração da situação. De resto é preciso assinalar que parte
da esquerda, na mesma medida em que fez valer de forma qualitativamente nova a
firmeza da constituição capitalista na segunda fase do fim de uma época após
1989, pretende agora podar o discurso com “suavidade”. A falsa cortesia
pós-moderna no trato, enquanto etiqueta “da política discursiva”, põe trancas
na porta da polémica. Pretende-se que seja o mais possível ignorado o facto de
a discussão sobre a teoria radical da crise ter sido desde o início cheia de
invectivas ideológicas (ao centro estava a acusação de “objectivismo” ou
“economismo”), desonestidades intelectuais e mesmo denúncias pessoais.
A propaganda de uma
“multiplicidade de abordagens” (6) ela própria ainda é devida ao
enfraquecimento, diluição ou simples ignorância pós-modernas da determinação
real das categorias, que tem muito a ver com a virtualização agora chegada ao
fim do processo de valorização na era dita neoliberal. O problema da
objectividade negativa das relações de fetiche, que não só ele próprio é criado
e reproduzido pela subjectividade nestas incluída, mas também promove uma
dinâmica destrutiva insusceptível de ser controlada no contexto desta forma
social, pôde permanecer recalcado com êxito junto da classe média académica,
realmente já apinhada nas margens da precarização, no tempo da cavalaria da
fortuna das bolhas financeiras. Isso repercutia-se também nos discursos de
esquerda. O marxismo do movimento operário não foi ultrapassado, mas sim
dissolvido em momentos díspares e reinterpretado de modo subjectivista ou
mistificatório no sentido da ideologia de classe média (7).
Com isto concluímos
por agora. A nova dureza das relações exige firmeza e determinação no debate sobre
esta objectividade negativa. Já não é possível uma fuga para o notório
descomprometimento pós-moderno de um laissez
faire também teórico, porque as questões teóricas e analíticas se colocam
como questões existenciais. Provavelmente apenas a próxima geração a entrar na
consciência social, que definitivamente já não apanha nada da banha da
prosperidade fordista nem consegue já criar qualquer ilusão de máquina de
jogos, é que vai perceber isto em toda a sua amplitude.
1. A teoria da crise na história do marxismo
Para poder
compreender a situação no que diz respeito à teoria da crise é preciso pelo
menos um breve olhar sobre a história do marxismo. Salta imediatamente à vista
que o auge dos debates sobre a teoria da acumulação e da crise de Marx ocorre
na época anterior ao desabar da crise verdadeiramente grande. Podem ser apontados
como clássicos os debates em torno do revisionismo de Bernstein e da teoria do
colapso de Rosa Luxemburgo ainda antes da I Guerra Mundial, bem como da de
Henryk Grossmann no fim dos anos de 1920. A parte de longe preponderante do
marxismo do movimento operário, tanto da linha social-democrata como da
leninista e mesmo da linha de esquerda ou comunista dos conselhos, recusava no
fundo a ideia de um limite interno objectivo da valorização do capital.
Parecia-lhes que assim o sujeito ontológico classe operária seria privado da
sua competência para a acção, como se verá melhor de seguida.
Eduard Bernstein
inventou uma “teoria do colapso”, até ao seu tempo inexistente nos debates
marxistas (apoiando-se para isso pura e simplesmente em partes de frases das
actas dos congressos social-democratas), a fim de justificar a sua estratégia
reformista com a teoria da acção. Apenas Rosa Luxemburgo, no seu livro A acumulação do capital (1912), tentou
esboçar a teoria de um limite interno objectivo do capital. No entanto via este
limite em última instância apenas como falta de possibilidade de “realização”
da mais-valia na esfera da circulação, enquanto a produção de mais-valia em si
seria supostamente inesgotável. Grossmann, pelo contrário, na sua obra A lei da acumulação e do colapso do sistema
capitalista (1929), parte de facto da produção de mais-valia; no entanto esta
não depararia com limites relativamente à posterior acumulação de capital em
geral, mas apenas relativamente a um suficiente rendimento para o consumo da
classe capitalista.
Perante a chuva de
críticas violentas de todas as fracções marxistas, tanto Luxemburgo como
Grossmann afirmaram que as suas reflexões eram afinal apenas “ficções teóricas”
com referência a uma tendência real; o verdadeiro “fim” do capitalismo seria
trazido apenas pela “vontade política” do movimento operário. Tanto na crítica
como na anti-crítica, o termo “colapso” acabou afinal por ser reduzido à acção
revolucionária (ou mesmo reformista), tendo a fundamentação na teoria da
acumulação passado para último plano (para uma discussão crítica aprofundada
deste debate histórico ver Kurz 2005, bem como os caps. 7-9 deste livro).
Esta discussão
clássica da teoria da crise no marxismo do movimento operário foi engolida pela
crise económica mundial, pela barbárie nacional-socialista e pela II Guerra
Mundial. Após 1945 reanimou-se de facto numa forma enfraquecida, mas a teoria
de um limite interno objectivo foi considerada refutada e não voltou a ser tematizada.
A teoria da acumulação desligou-se de uma teoria da crise agudizada, não em
último lugar sob a impressão da prosperidade em curso a seguir à guerra. As
contradições do movimento de acumulação foram reduzidas teoricamente a meras
formas de desenvolvimento de um processo em si inesgotável. No fim dos anos de 1950
escrevia Paul Mattick, um dos mais destacados representantes do antigo
comunismo de esquerda e da crítica da economia política marxiana: “Apesar dos
períodos intercalares de depressão, cada retoma da produção capitalista atinge
um nível mais elevado e uma maior expansão que a anterior… O capital
desenvolve-se segundo o método ‘três passos em frente, dois passos atrás’. Mas
esta forma de movimento não impede o progresso geral, apenas o atrasa…; se
observarmos o desenvolvimento capitalista como um processo contínuo e estável,
o seu ritmo apresenta-se como moderado” (Mattick 1974/1959).
O problema da crise
foi cada vez mais subsumido no movimento cíclico “eterno” ou nas rupturas
estruturais “sempre em retorno”. Independentemente disso, o ponto fulcral da
elaboração teórica no contexto do “marxismo ocidental” deslocara-se
progressivamente para as teorias do sujeito e da acção, enquanto o lado
objectivado do desenvolvimento capitalista parecia ter ficado quase sem objecto
(para a crítica desta tendência unilateral ver Kurz 2007). Esta viragem
deveu-se naturalmente sobretudo a uma necessidade, nomeadamente à desacoplagem
académica da teoria marxista do campo de referência do movimento operário que,
após a derrota perante o nacional-socialismo e o fascismo e na história do
pós-guerra, deveria consumar a sua institucionalização capitalista há muito
dada.
Também na nova
esquerda do movimento de 1968, que ainda se orientou mais fortemente no sentido
da teoria da acção ou do sujeito positivo, a teoria da crise já não estava no centro
das atenções, embora esta temática continuasse a desempenhar um certo papel e
não tivesse desaparecido completamente do campo de visão no contexto do
esvaziamento da prosperidade fordista e das manifestações de crise (ainda
relativamente moderadas) nos anos de 1970. (8) Mas eram apenas combates de
retaguarda da discussão tradicional da teoria da crise. Nem sequer se fez a
tentativa de sistematizar conceptual e analiticamente a teoria da crise
inacabada que se encontra nos fragmentos de Marx não completamente elaborados.
A incoerência dos diferentes momentos da teoria da crise permaneceu também nas
abordagens neo-ortodoxas da “reconstrução” da teoria de Marx a partir da massa
de textos tornados gradualmente acessíveis desde os anos de 1970, tanto mais
que a temática da crise não assumia um peso decisivo.
Mas foi justamente a
discussão em torno da teoria da crise e do colapso que se tornou o ponto
nevrálgico em que se reproduziu a contradição interna da relação de capital
como contradição interna do marxismo. Como numa lente ustória, vem aqui à luz a
polaridade indissoluta entre o ponto de vista sociológico das classes e a
relação de fetiche socialmente abrangente, entre o sujeito constituído de modo
capitalista e a objectividade negativa, tal como a oposição entre o trabalho
abstracto e a ontologia do trabalho. Esta conexão com a teoria da crise falhada
permaneceu fundamentalmente alheia ao discurso neomarxista da nova esquerda.
Uma vez que nem a relação da constituição fetichista da modernidade nem a
ontologia do trabalho constituíram o foco da crítica, tendo sido na melhor das
hipóteses tocadas apenas superficialmente, o resultado também não pôde ir além
de uma fraca reencenação das velhas estruturas argumentativas há muito
esgotadas. Mas, se a discussão clássica em torno da “teoria do colapso” tinha
em vista pelo menos indirectamente o problema do tempo histórico, ou seja, das
tendências de desenvolvimento de longo prazo, a viragem para a teoria do
sujeito e da acção caiu cada vez mais no horizonte temporal reduzido da falsa
imediatidade e com isso numa percepção positivista.
Também a “reconstrução”
filológica neo-ortodoxa visivelmente não deu em nada, não tendo já sequer permitido
estabelecer qualquer carreira académica. Aliás o impulso fundamental do
movimento de 1968 estava mais numa orientação redutoramente praxeológica e
politicista. (9) Quando a mediação mais uma vez tentada com o sujeito-em-si da
“classe operária” por via da agitação foi lamentavelmente por água abaixo já
nos anos de 1970, este fracasso foi tão pouco reflectido criticamente como o
colapso do socialismo de Estado no Leste dez anos depois. Dado que as pessoas
se puseram à procura de sub-rogações da referência da práxis politicamente
imediata, os restos da teoria da acumulação e da crise foram sobretudo
explorados para a sua legitimação.
A partir da década de
1980 consumou-se a história de decadência e desagregação do marxismo. A
ausência de mediação com a teoria da crise, que permanecera sem solução,
desempenhou aqui um papel decisivo. Constituindo a crítica da economia política
de Marx naturalmente o pano de fundo para as discussões da teoria social de
esquerda, ela no entanto deveria empalidecer cada vez mais. Entre as discussões
do marxismo do movimento operário clássico sobre a teoria da acumulação, da
crise ou do colapso e os modos de recepção neomarxista da crítica da economia
política nas décadas de 1960 e 1970 ainda tinha havido uma continuidade
claramente reconhecível. A ruptura então não estava na transformação dos
conteúdos teóricos, embora a teoria da crise tivesse saído do foco da atenção, mas
na perda do campo de referência da “classe operária” e do movimento operário que
continuava teimosamente. A ligação desta decadência da “base de classe” com um
processo de crise histórica qualitativamente novo que ia abrindo caminho não
foi objecto de qualquer reflexão. Ligação que se apresenta hoje como decadência
da ontologia marxista do trabalho de par com a decadência da “substância do
trabalho” do próprio capital e marca um limite interno comum do “marxismo do
trabalho” e da valorização do capital.
Nos anos de 1980 rasgou-se
consequentemente também o continuum
histórico do marxismo. No que respeita ao mainstream
das conjunturas de esquerda, entre o esvaziamento do marxismo nos anos de 1970
e a necessidade de uma nova recepção e reformulação que germina timidamente nos
últimos anos, abriu-se um buraco negro. É nesse buraco que se precipita a
hegemonia discursiva do pós-modernismo na esquerda, como é sabido.
Este campo era
completamente inapropriado para a continuação do debate, fosse qual fosse a sua
natureza, sobre a teoria marxiana do capital e da crise. A transição
pós-moderna, que em muitos aspectos abrangeu também grande parte da esquerda
residual em serviço académico ou político, consumou o desacoplamento do nível
de reflexão do marxismo do movimento operário que já se manifestara desde os
anos de 1960. Na medida em que o discurso pós-moderno, com a repreensão
insuficientemente fundamentada ao “economismo” da dogmática do marxismo de
partido, removeu o contexto interno da análise categorial do capital em geral,
naturalmente que deixou de haver lugar para a teoria da acumulação e da crise;
e isto em diversos aspectos.
Em primeiro lugar a
dialéctica sujeito-objecto foi aplanada para lá da correspondente tendência do
“marxismo ocidental” e do movimento de 1968, e mais ou menos claramente; mas,
no conjunto, preponderantemente reduzida ao plano subjectivo, da teoria da
acção (ou justamente “praxeológico”). Já não se tratava, no entanto, do
entendimento enfático de um sujeito autónomo do pensamento e da acção, que
deveria aceder à auto-consciência, mas sim de um conceito de sujeito
“estrutural”, que desterrara o portador da acção para uma aglomeração
eternamente em mudança de “relações de forças” e estruturas de poder sociais.
Este pensamento referia-se sobretudo à metamorfose da “compressão”
institucional do paralelograma de forças social nas relações internas
capitalistas, a qual permanecia em grande parte sem mediação com o plano
categorial das condições capitalistas de existência.
Em segundo lugar, as
categorias político-económicas sofreram uma reinterpretação culturalista e
estetizante, em extensão diversa, mas claramente reconhecível através de todo o
espectro da esquerda; tratava-se cada vez mais sobretudo de “estilos” de
reprodução que, justamente, não estavam mais em qualquer relação sistemática
com a determinação categorial da teoria de Marx, já apenas tematizada vaga e
marginalmente.
Em terceiro lugar, para
este pensamento a relação de capital dissolve-se positivistamente em
“singularidades e conjuntos” (Foucault) de movimentos particulares de poder,
dissolvendo-se consequentemente a crítica do capitalismo em “críticas locais”
(Foucault) igualmente particulares (para a crítica desta redução ver Kurz 2007).
Com isto a teoria da acumulação e da crise parecia ter ficado definitivamente
sem objecto. (10)
Na medida em que o
discurso de esquerda não se refugiou completamente na ontologia do poder de
Foucault, com as suas referências a Nietsche e Heidegger, a decadência da
determinação categorial marxiana tornou-se naturalmente notória justamente nas
correntes que moldaram através do pensamento pós-moderno a referência residual feita
de passagem ao paradigma não suplantado do marxismo tradicional. Isto aplica-se
particularmente ao pós-operaismo de cunho negriano, que até hoje mantém certa
influência junto dos movimentos de crítica da globalização. O conceito de crise
pôde aqui levar uma vida depois da morte fantasmaticamente pós-marxista apenas
porque ele foi arrancado da sua ancoragem na constituição fetichista
capitalista e reinterpretado subjectivistamente até à irreconhecibilidade no
quadro do pós-modernismo (sobre isto ver em detalhe cap. 9).
Neste tempo do
“buraco negro” teórico sobreviveram ainda outros grupos, correntes e escolas
marxistas residuais e pós-marxistas, em cujo pensamento a teoria de Marx, no
seu conjunto cada vez mais marginal, continua a parecer constituir a referência
central e em todo o caso mais que no pós-operaismo. Mas é justamente nas
publicações desta banda que salta à vista a ampla ausência de uma teoria da
crise, mesmo que apenas rudimentarmente elaborada. Esta é a diferença mais
marcante no debate teórico no campo do marxismo do movimento operário, incluindo
as suas histórias de fim de linha neomarxistas, o que aponta para o facto de as
abordagens de uma elaboração crítica terem ficado completamente de fora e terem
ido numa direcção errada. Em vez de suplantar a incoerência da teoria da crise
marxista, a temática em geral foi empurrada para o que é secundário e para a
letra miúda. O lugar vazio (11) da teoria da crise apresenta-se não apenas nas
escolas do marxismo residual, como a que se agrupa em torno da revista Argument de Haug, do círculo em torno da
Prokla mais academicamente plural ou
da revista Sozialismus saída dos
esforços de “reconstrução” da teoria de Marx, as quais ligaram amplamente a sua
reflexão a interesses académicos, ideologias do movimento, conjunturas
políticas ou tendências sindicais, mas também nas posições não imediatamente
académicas ou redutoramente praxeológicas ou politicistas.
Assim, por exemplo, o
agrupamento da Nova Esquerda estabelecido há muito tempo, que hoje está
presente com a revista Gegenstandpunkt,
publicou ao longo de anos toda uma série de brochuras divididas em secções com
a suposta “verdade definitiva” sobre a crítica da economia política de Marx;
desde o conceito de capital, passando pelo Estado burguês e pelo imperialismo
até à psicologia do individuo burguês. Mas será em vão que se procura a
correspondente proclamação da verdade sobre a teoria da crise.
Por outro lado, a Nova
Leitura de Marx de Helmut Reichelt e Hans-Georg Backhaus, desenvolvida desde os
anos de 1970 a partir do contexto do debate neo-ortodoxo da “reconstrução”, nos
“anos de chumbo” da hegemonia ideológica pós-moderna tematizou de facto em
elevado nível de reflexão alguns dos pontos nevrálgicos no debate do marxismo
tradicional, como a questão da teoria monetária do valor ou o problema da
constituição fetichista sujeito-objecto. Mas esses esforços permaneceram sem
acutilância justamente porque faltou completamente a mediação com a teoria da
crise. (12) Na continuação do seu desenvolvimento de base positivista por
Michael Heinrich a teoria da crise é considerada marginal (13); mas ela fica
verdadeiramente sem jeito, em parte nenhuma sai do contexto tradicional e antes
é posta de lado uma vez que com a revisão do conceito marxiano de substância
ela já ficara desvirtuada (14).
Os publicistas ditos
“anti-alemães”, por sua vez, fiéis à sua falsa ortodoxia de Adorno, não
trataram à partida de uma nova abordagem da teoria da acumulação e da crise. O
problema da crise surge apenas em formulações crípticas e afoga-se em grande
parte num reducionismo à crítica da ideologia (para a crítica ver Kurz 2003).
(15) Também a meritória pesquisa de Postone (2003), se é verdade que leva à
crítica do trabalho, no entanto também obnubila sistematicamente a teoria da
crise e por isso fica a meio caminho.
Por muito que as
posições do marxismo residual e do pós-marxismo se odeiem reciprocamente de
morte, têm em comum a completa ausência ou a pouca exposição da teoria da
crise. É precisamente aqui que se revela particularmente que todas no seu
conjunto não deixaram de ser afectadas pela passagem pós-moderna desde os anos
de 1960; quer o admitam agora ou não. Por maioria de razão a nova teoria
radical da crise, na transformação da crítica da economia política de Marx pela
crítica da dissociação-valor, teria de embater contra todas elas por igual.
Nesta situação, a
determinação categorial da crise há muito negligenciada foi não só retomada mas
também completamente refundada: já não pelas deficiências e contradições nas
metamorfoses da circulação do capital, mas sim pela autocontradição no plano
basilar da substância do trabalho. A crítica da abstracção real capitalista “trabalho”
e o novo conceito fundamental de crise estão aqui numa conexão interna de
condicionalidade recíproca. Esta teoria radical da crise não se entende como
reinterpretação meramente filológica da análise das categorias, pelo contrário,
coloca-se numa situação histórica modificada: com a terceira revolução industrial,
este o argumento com referência às novas condições da valorização do valor
postas pelo desenvolvimento das forças produtivas, a auto-contradição central
passa o seu ponto culminante e a substância do trabalho diminui em termos
absolutos pela primeira vez. (16) Assim o processo de valorização perde a sua
condição de possibilidade e, após um período de incubação por meio da
circulação no mercado mundial, chega definitivamente ao fim.
Já desde a sua
primeira formulação (Kurz 1986) esta tese de um limite interno absoluto da
valorização do capital tornado manifesto foi rejeitada de modo notório e
suspeitosamente carregado de sentimento, assim se pretendendo fugir ao debate pormenorizado;
primeiro em discussões em seminários e na “literatura cinzenta” da subcultura
radical da esquerda residual, depois também nas gazetas da esquerda política e
nas publicações do marxismo residual e do pós-marxismo académicos, à medida que
a crítica da dissociação-valor a partir dos anos de 1990 saía das catacumbas e
atingia uma certa visibilidade na esfera pública burguesa. Esta nova abordagem
deveria ser abafada à partida como inferior, “manhosa” e quase impossível de
ser pensada. (17)
Uma tal rejeição
também exprime indirectamente a tentativa de canalizar preventivamente a
legitima necessidade que desponta no mundo da esquerda nos últimos tempos de,
após uma longa abstinência, utilizar novamente o Marx “autêntico” nos seus
textos fundamentais. Antigamente isso chamava-se “formação em O Capital”. Michael Heinrich serve esta
necessidade com a sua exposição global “científica” e com textos de
“introdução”. Mas esta espécie de tomada de conhecimento assistida é bastante
ambígua. Sugere-se assim que a exegese filológica de Marx na sua exposição
abstracta poderia oferecer uma espécie de conhecimento fundamental neutro. Isto
tem para os receptores a vantagem de que esta “aprendizagem do conhecimento”
parece permanecer exterior à sua política de movimento e restantes
preconceitos; a “formação heinrichiana” pode assim ser ligada a quase todos os
“pontos de vistas políticos” sem que se tenha de recear consequências. Esta
“ajuda na aprendizagem”, no entanto, também encobre os momentos ideológicos da
interpretação que são igualmente absorvidos como que por si mesmos; e também já
caem bem (justamente para a consciência socializada pós-modernamente) sem que
tenham de voltar a ser reflectidos. (18)
Assim já não se nota
que toda a orientação desta leitura “introdutória” é tudo menos neutra,
justamente no aspecto teórico. Ela canaliza o entendimento da teoria de Marx,
já a partir dos fundamentos da análise da forma do valor, para uma grelha que
deve determinar toda a leitura posterior e em última instância reduz a dinâmica
interna da relação de capital. Por isso é apenas consequente que nesse sentido
já na “Introdução” seja preventivamente necessária a polémica massiva contra a
teoria da crise que não se ajusta de modo nenhum ao entendimento fundamental aí
apresentado. Heinrich não deixa ver, ou se o faz é apenas contrariada, difusa e
indirectamente, que a sua interpretação específica desde o início opera com conceitos de luta que são camuflados de
seriedade académica (diferente das interpretações “não sérias” “nem
científicas”); e já nem sequer consegue revelar como esta interpretação está
mediada com o desenvolvimento económico-social. Ora apenas o encaixe do
entendimento na situação histórica, pelo menos rudimentarmente formulado,
permitiria aos receptores, ao “apropriarem-se” da teoria de Marx, reflectirem criticamente
sobre o seu próprio ponto de vista, a partir do qual eles desenvolveram a
necessidade dessa aprendizagem, e examiná-lo à luz da teoria de Marx.
2. O capital vai muito bem. Ignorância situacionista da
crise como falta da dimensão histórica do tempo
Com a resistência
furiosa mistura-se naturalmente uma má consciência ou pelo menos um
pressentimento negativo. A nova teoria radical da crise pôde em todo o caso
referir-se ao processo empírico de crise da terceira revolução industrial. Não
tendo o discurso sobre a teoria da crise do marxismo residual em sentido
estrito sobrevivido à primeira metade dos anos de 1980, a nova crise mundial
prosseguiu desde então de facto imparavelmente, já não sendo no entanto
categorialmente percebida como tal. Esta situação pode ser formulada como paradoxo
histórico: a generalidade da esquerda deixou de se ocupar com a teoria da crise
de Marx justamente no momento em que começou o novo processo de crise real.
Responsável por isso
foi sobretudo uma grelha de interpretação em que o problema da crise surge apenas
sob o ponto de vista da desintegração social e do empobrecimento ou da
administração da pobreza crescentemente repressiva, mas não como simultâneo
limite interno da lógica da valorização. Pelo contrário, “para o capital” as
coisas iriam cada vez melhor através de lucros exorbitantes; no caso das
paralisações (repetidamente minimizadas) da acumulação real tratar-se-ia de
“habituais processos de recuperação capitalista” (Ebermann/Trampert 1995, 56)
que logo se convertem novamente em prosperidade: “Após múltiplas correcções o
mercado mundial está novamente em alta. O Instituto IFO afirma mesmo o início
de uma fase longa de retoma” (ibidem, 36). Uma afirmação a que se gostaria de
aderir.
O mesmo jogo se
repete nas conjunturas globais de déficit não reconhecidas como tais no fim dos
anos de 1990 e desde 2004. Também a pretensa “crítica do valor anti-alemã” se
armou em importante com a afirmação de que “as sentenças categóricas… sobre o
colapso do capital a ocorrer seja quando for não têm qualquer fundamento lógico
nem histórico (em todo o caso também não empírico, pois o capital está afinal
novamente em alta como já há muito não acontecia)…” (Initiative Sozialistisches
Forum 2000, 60). Assim pretendiam os aristocráticos críticos da ideologia ver
apenas de forma bem grosseiramente ideológica “que atualmente a situação está
extraordinariamente boa para o capital tanto substancial (!) como formalmente
(!)” (ibidem, 62). É notável como aqui os representantes de uma autoproclamada
ortodoxia de Adorno caem no mesmo positivismo vulgar que os notórios
politicastros do velho radicalismo de esquerda logo que são postos perante a
situação de ter de manter a tensão exigida por Adorno entre teoria e empiria.
Pretendem teimosamente contrapor à teoria radical da crise justamente a
plausibilidade aparente não mediada de fenómenos superficiais temporários e
empíricos.
O facto de neste
contexto se afirmar além disso que a situação é “extraordinariamente boa para o
capital” não só empiricamnmente, mas também e sobretudo “substancialmente” – em
plena sintonia com o marxismo do movimento operário no seu melhor –sugere ao
mesmo tempo a inesgotabilidade do “trabalho”. Neste ponto deve ser observada
também a solidariedade com os marxistas políticos conceptualmente fracos que se
tinham irritado com “todas as afirmações de que o capital teria terminado a
produção suficiente de mais-valia” (ibidem, 31). É justamente neste sentido que
deve ser entendido o eco da parte da Nova Leitura de Marx: “A ‘criação real de
valor’ que Kurz já vê a desaparecer prossegue em todo o caso alegremente,
apesar do desemprego crescente” (Heinrich 2000 a, 41). Também salta à vista
implicitamente em tais padrões de argumentação, que são comuns a diversas
posições como que espontaneamente, o bloqueio do marxismo residual à crítica
radical da ontologia do trabalho tradicional. Neste coro também não podia
faltar naturalmente a voz do pós-operaismo. Michael Hardt e Antonio Negri
constatam de modo já quase alegremente positivista no seu prestável bestseller mundial Empire: “Agora, enquanto escrevemos este livro e o século XX chega
ao fim, o capitalismo está admiravelmente de boa saúde e a acumulação robusta
como nunca” (Hardt/Negri 2002, 281).
É notória em tais
afirmações aqui aduzidas a título de exemplo, que nos últimos anos têm vindo a
perder o acanhamento, a particularidade de que já não argumentam
fundamentalmente com base na teoria da acumulação ou apresentam apenas
fragmentariamente os correspondentes momentos de reflexão, pelo menos no que
respeita à teoria da crise. As categorias de Marx são a este respeito
descontextualizadamente maltratadas, enquanto a fundamentação em caso de dúvida
apresenta de modo puramente positivista pretensas provas empíricas ou mesmo
meras apreciações e previsões dos institutos económicos ou dos porta-vozes da
gestão nos média. Com razão é preciso falar das fases de definhamento dos antigos discursos marxistas sobre a
teoria da crise, nos quais entra em vez da análise sistemática uma combinação
directa de “pontos de vista” irreflectidamente ideológicos com factos
superficiais indiscriminadamente colados.
Esta espécie de
“apreciações” superficiais encontra-se justamente em Michael Heinrich, não apenas
uma vez, mas periodicamente. Também para ele o desenvolvimento dos anos de 1990
e após 2000, juntamente com os momentos aí incluídos de crises financeiras e
conjunturais particulares, representa apenas o sobe e desce descontextualizado
dos ciclos e mudanças estruturais capitalistas “habituais”. É isto que
constitui o seu entendimento fundamental do capitalismo: “Prosperidade e crise
alternam-se constantemente no capitalismo, estando por detrás deste sobe e
desce tendências de expansão e aprofundamento do capitalismo que estão longe de
ter chegado ao fim” (Heinrich 2007).
Assim vê ele também a
crise das dotcom após a passagem do
século: “Nos anos de 2001 a 2003 tivemos uma crise dessas… No entanto ela está
superada, uma vez que os lucros crescem novamente e isto já desde há dois anos”
(Heinrich 2006). Também aqui factos empíricos temporários são tomados pelo todo
sem o seu contexto de mediação e prevê-se imediatamente: “A economia cresce
como há muito não acontecia; o número de desempregados baixa, a colecta de
impostos sobe… O que poderá ter efeitos de longo prazo é o crescimento do
investimento em bens de equipamento” (ibidem). Um ano depois ele hipostasia
quase enfaticamente a conjuntura global baseada no déficit sem perceber o seu
carácter precário: “Lucro sem fim. O capitalismo apenas começou” (Heinrich
2007).
Com tais percepções e
prognósticos o positivismo de Heinrich vem a si; ele vê apenas uma sucessão de
fenómenos em que se alternam a recessão e a retoma, os acontecimentos e as
deslocações. Mas para ele não existe a coerência de um determinado
desenvolvimento histórico do capital desde o fim da prosperidade fordista, cuja
reflexão apenas seria permitida pela ordenação dos fenómenos oscilantes num
contexto superior. (19)
Naturalmente que
assim não pôde ser compreendida a unidade histórica do processo de crise global
da terceira revolução industrial. O contexto interno deste processo
resolveu-se, pelo contrário, nos seus fenómenos individuais interpretáveis
arbitrariamente (à boa maneira pós-moderna), ou seja, em formas de
desenvolvimento percebidas sem conceito histórico. Isto vem de encontro ao
senso comum burguês ordinário com o seu horizonte temporal reduzido, para o
qual já não é concebível um processo de desenvolvimento que exceda metade da
vida de uma pessoa. O que se manteve nos debates da esquerda foi justamente apenas
a precarização social, confundida com a pretensa marcha triunfal do capital
mundial. Daí que desde os anos de 1990 e pelo menos desde Hartz IV o debilitado
paradigma da luta de classes tenha tido um novo boom; no entanto naquelas versões pós-modernas frequentemente
contagiadas sobretudo pelo interesse imanente das classes médias ameaçadas pela
queda, versões essas que foram trazidas a terreiro justamente contra a nova
teoria radical da crise.
O desabar da crise
desde o Outono de 2008, fundamental e aparentemente imprevisto, mas que na
realidade há muito estava a ser preparado e que confirma na prática a tese de
um limite interno histórico mais que anteriormente, foi por assim dizer como um
balde de água fria para a esquerda marxista residual e pós-marxista, tal como
para as elites capitalistas. Isto aplica-se não em último lugar mais uma vez a
Michael Heinrich, que ainda no Verão de 2008 constatava lapidarmente: “Entretanto
volta a haver uma nova crise…” (Heinrich 2008), que ele no entanto pretendia
interpretar como de costume de forma fenomenologicamente redutora no sentido de
que ela tal como as anteriores poderia chegar “ao fim de forma relativamente
rápida”; e de facto perfeitamente no sentido dos prognósticos oficiais dos
institutos económicos e dos governos, sem consequências profundas, porque segundo
a sua afirmação “… esta recessão teve até agora efeitos relativamente diminutos
sobre a economia mundial. Embora as previsões de crescimento tenham sido
corrigidas em baixa também na Europa e particularmente na Alemanha, a questão é
que após a ‘retoma’ dos últimos anos era preciso contar de qualquer maneira com
uma queda da conjuntura” (Heinrich 2008).
O modo de pensar
positivista simplesmente não estava em posição de perceber que o processo histórico
de crise tinha atingido uma nova dimensão, cujas formas de desenvolvimento representam
uma ruptura qualitativa; entretanto até mesmo na percepção da própria ciência
económica burguesa. Surge assim a uma luz peculiar a afirmação de Heinrich dois
anos antes: “(Quem) fantasiou a pura queda, até agora… caiu no ridículo”
(Heinrich 2006). Na realidade quem caiu no ridículo foi o próprio Heinrich.
Ainda que a nova dimensão da crise não signifique que o capitalismo se desfaça
imediatamente no actual horizonte temporal, o que de qualquer maneira ninguém
tinha afirmado, as “avaliações” até aqui descontextualizadamente
fenomenológicas revelam-se como fantasmagoria positivista, perante o pano de
fundo de um movimento diferente do capital suposto “habitual”.
Em todo o caso, pela
primeira vez assombra claramente o fantasma de um colapso iminente; e a palavra
interdita veio agora penosamente à boca dos chefes intimidados dos institutos
económicos, do presidente dos EUA e do ministro das finanças alemão, que desde
então se desfazem em esforços de resgate desesperados. Diz tudo o facto de
entre as elites do capital se ter espalhado a ideia de que agora os manuais de
economia seriam de pouco préstimo. Mas ao que parece a esquerda nas suas
diversas correntes pretende que tudo continua a correr às mil maravilhas com
habitualmente, como se nada tivesse acontecido. No mínimo deve conceder-se que com
todos os juízos cómodos sobre o estado das coisas capitalistas se passou
totalmente ao lado da questão e com isso se ficou sem palavras. Ao que parece a
esquerda acredita mais no capitalismo do que os seus guardiões oficiais.
Precisamente os
representantes de uma crítica do capitalismo pretensamente radical na sua
maioria não estão em posição de perceber adequadamente a quebra fundamental.
Por um lado, procedem agora como se sempre o tivessem sabido e dito, embora o
caso seja precisamente o contrário. Por outro lado, verifica-se que as mesmas
pessoas continuam a seguir o seu padrão positivista de interpretação relativamente
ao desenvolvimento real e escutam avidamente os sinais de “discurso de fim de
alarme” do lado das instituições oficiais, a fim de salvarem o seu entendimento
de uma “normalidade” ininterrupta do processo de valorização. Fora da observação
positivista fica o facto de se tratar de um processo de crise qualitativamente
novo que entrou numa fase irreversível. Embora devesse ser claro que os pacotes
de resgate apenas poderão adiar o problema e que após um período transitório
(por exemplo, uma estabilização de curto prazo com apoio do crédito público e a
perspectiva de uma conjuntura económica de inflacção) o limite interno atingido
terá de se erguer de modo tanto mais violento, os crentes aproveitam a ocasião
de qualquer oscilação ou abrandamento temporários para se sentirem mais uma vez
confirmados. A esquerda simplesmente não quer ver que o seu bom e velho
capitalismo está a esbarrar em limites absolutos. O que levanta a questão das
barreiras ideológicas por isso responsáveis.
3. Mitologização da teoria do colapso
A velha palavra-estímulo da “teoria do colapso”, que
há muito estaria ultrapassada, foi repetidamente recuperada nas polémicas com o
conceito de crise da crítica da dissociação e do valor, como se assim o assunto
já ficasse per se resolvido. Fazem de conta que nesta matéria já nem
sequer é necessário dar-se ao trabalho de fornecer qualquer fundamentação referente a
conteúdos. (20) Tudo indica que a maior parte dos que se vangloriam desta certeza
já apenas conhece as abordagens históricas da chamada teoria do colapso de
ouvir falar, se tanto; e é pelos vistos nesta cartada que também apostam os que
pretendem instrumentalizar este preconceito não abalizado, embora devessem saber melhor.
O termo “teoria do colapso” é naturalmente
uma atribuição vinda de fora, enquanto o conceito originalmente utilizado por
Marx de “limite interno” em última instância absoluto, que começa a
manifestar-se na prática desde o fim do século XX, corresponde muito melhor à
reflexão sobre a teoria da crise baseada na crítica da dissociação e do valor e
também no seu auto-entendimento assim é formulado na maior parte das vezes. Entretanto
a metáfora do “colapso”, esgrimida de forma pejorativa pelos seus detractores,
foi aceite pelos representantes desta elaboração teórica com alguma indiferença
e oportunamente
ilustrada com a imagem de um “colapso” (21) e mesmo com uma vénia irónica perante a
resistência assanhada
por parte de todos os campos residuais do marxismo. O entendimento vulgar sugere que o “colapso” tem de ocorrer de um
modo tão instantâneo como um indivíduo cai morto imediatamente ao sofrer um
enfarte grave do miocárdio. Para nos
atermos à imagem: um sistema social global que se formou e desenvolveu ao longo de mais de 200 anos certamente terá um
colapso diferente do de um indivíduo; é outro o lapso de tempo até que o
sujeito global da valorização, por assim dizer, caia no chão. Tal como o
capitalismo percorreu nos primórdios da Modernidade uma época de constituição
rica em rupturas e convulsões, agora
está a percorrer uma época de dissolução interna que, no entanto, devido à sua
dinâmica progressiva no plano endo-histórico, tem um horizonte temporal muito
mais reduzido; mas este continua a ser de certo modo histórico. À ascensão
lenta e dolorosa corresponde, por isso, uma derrocada relativamente rápida,
ainda que esta não se apresente necessariamente enquanto tal à percepção imediata do mundo da vida.
É precisamente isso que perfaz a
diferença, no âmbito da nova culminação da crise, entre o tempo actual ou individual
e o tempo histórico. Embora uma parte considerável da esquerda se tenha entendido
no sentido da existência da possibilidade de uma vida eterna do capitalismo “em
si” e assim estenda o seu horizonte temporal histórico arbitrariamente, para a teoria de um limite interno tornado
actual em termos históricos o quadro temporal do mesmo coincide com a primeira metade do século XXI (um espaço de tempo
curto quando comparado com a totalidade da história interna desta formação) sem
que haja porventura a necessidade de indicar uma data precisa. Neste sentido, o
tempo histórico do capitalismo esgotou-se. Se a teoria radical da crise
se confirmar na prática, para os historiadores do
futuro (se então ainda existirem) o alcançar do limite interno contrair-se-á de
facto a uma cesura que, no tempo histórico, se apresenta, por assim dizer, como
um ponto, embora possa abranger toda uma geração humana. Da perspectiva da realidade
da vida contemporânea, porém, pode parecer tratar-se de um processo
temporalmente indefinido ou mesmo ilimitado que também poderia ser interpretado
de modo completamente diferente. Reduzir a metáfora do “colapso”
ao horizonte de percepção actual é
claramente um elemento da táctica discursiva dos oponentes da teoria radical da crise, mesmo que estes nem
sempre devam ter plena consciência disso. (22)
Abstraindo da problemática da metáfora, a
teoria do limite interno historicamente alcançado
é boicotada antes de qualquer fundamentação em virtude do seu conteúdo,
sobretudo pelo expediente de a associar sem mais delongas e de modo puramente
exterior às teorias históricas do colapso próprias do marxismo
do movimento operário; e, na maior parte dos casos, até sem se dar ao trabalho
de designar estas pelo nome (não existiram outras senão as formuladas por
Luxemburgo e Grossmann, muito tempo após a controvérsia originalmente encenada
por Bernstein). Assim se escamoteiam as diferenças decisivas na derivação
teórica. As velhas abordagens de uma chamada teoria do colapso fracassaram
precisamente porque pretendiam ver o possível limite histórico apenas nas
formas de mediação na circulação, ou na falta de rendimento da classe
capitalista, mas não no desaparecimento da própria substância do trabalho
“válida” imposto pelo nível da produtividade. No terreno da ontologia do
trabalho do marxismo tradicional esta fundamentação mais aprofundada não era de
facto possível; e isso tinha também um momento de condicionalidade no processo
de desenvolvimento do próprio capital, cujas possibilidades de valorização da
energia humana abstracta ainda não estavam esgotadas.
Mas o traço
característico da nova teoria radical da crise consiste na ruptura com a
ontologia do trabalho, sob o efeito do esgotamento amadurecido destas
possibilidades, esgotamento este que apenas ele torna possível a teoria
concretizada de um limite interno no sentido da “dessubstanciação do capital”
ou da “desvalorização do valor”. Enquanto, por um lado, este contexto é hoje
negado positivistamente de modo meramente empírico, como vimos acima, por outro
lado, coloca-se contrafactualmente a conceptualidade de um esgotamento
sucessivo da substância do trabalho no quadro das velhas teorias do colapso que
não sabiam nada disso. (23) O termo “colapso” é assim mitologizado com referência à história das teorias para nem sequer ter de admitir a diferença fundamental
entre as formulações anteriores sobre o tema e a nova teoria da crise da crítica
da dissociação-valor.
Esta
mitologização prolonga-se na avaliação da importância supostamente elevada de
concepções de um “colapso” em todo o marxismo tradicional. Michael Heinrich dá
cartas a este respeito: “Na história do movimento operário, foi muito divulgada
a concepção segundo a qual as crises económicas acabariam por conduzir ao
colapso do capitalismo e o capitalismo estaria encaminhado para a sua ‘crise
final’. D’ O Capital foi depreendida
uma ‘teoria marxiana do colapso’. Nos anos noventa do século passado, esta
vetusta ideia foi reavivada... sobretudo por Robert Kurz” (Heinrich 2004, p.
176). Esta atribuição é completamente contrafactual e vira do avesso o
estado de coisas teórico-histórico que se apresenta
precisamente da forma inversa: a expressão “teoria do colapso” foi na verdade
uma invenção pejorativa de Eduard Bernstein, com a qual pretendia comprometer
os seus adversários no seio da social-democracia que, com bons motivos devidos
ao seu próprio posicionamento ideológico, se opunham a isso violentamente
e nada queriam ter a ver com essa designação.
Michael Heinrich não é o único a ignorar com toda a consciência o
facto de as posteriores teorias redutoras do colapso de Luxemburgo e de
Grossmann terem sido absolutamente
minoritárias e terem sido rejeitadas pelo marxismo tradicional, tanto social-democrata como
leninista e, não em último lugar, pelas correntes de extrema-esquerda daquele
tempo, e de uma forma tão veemente e genérica como é rejeitada hoje em dia a
nova teoria da crise por todo o conjunto do marxismo residual e do pós-marxismo. A única forma como a “ideia de um colapso” estava “muito
divulgada” no antigo movimento operário era precisamente como conceito negativo
da luta contra essa mesma “ideia”. Isto ressalta também de uma formulação de
Anton Pannekoek que, no final da crítica das teorias minoritárias do colapso de
Luxemburgo e Grossmann, escreve contra estas num tom inequívoco: “É, então,
aqui que ocorre aquilo que na literatura marxista mais antiga sempre foi
tratado como um estúpido mal-entendido dos adversários e para o que se usava o
nome de ‘a grande algazarra’” (Pannekoek 1971/1934, p. 28). O que, em Heinrich,
aparece como um consenso supostamente abrangente na “história do movimento operário” na realidade figurava na mesma
maioritariamente como um “estúpido mal-entendido dos adversários”. Paul M.
Sweezy, na sua Teoria do desenvolvimento
capitalista que nos anos cinquenta e sessenta do século XX teve várias edições americanas e alemãs, forneceu em retrospectiva
uma caracterização muito similar quanto a este ponto da por ele chamada
“controvérsia do colapso”: “No movimento socialista alemão, o medo da revolução
tinha-se tornado tão característico dos ‘ortodoxos’ como dos revisionistas...
Para esse fim era necessária… uma teoria que fosse capaz de garantir a
estabilidade do capitalismo. Por isso, todas as teorias do colapso tinham de
ser combatidas...” (Sweezy 1970/1942, p. 244).
É absolutamente
impossível que Heinrich não saiba de tudo isto. Pelos vistos está apostado em
que a sua atribuição errónea seja bem recebida nas faunas de esquerda, por
falta de conhecimento da história das teorias e das controvérsias, para assim
poder desqualificar a nova elaboração teórica, crítica da dissociação e do
valor, como sendo ela própria “marxista do movimento operário”. Esta tentativa
volta a cair-lhe em cima como um bumerangue, pois é ele próprio que reproduz
coerentemente a postura do movimento operário e do marxismo de partido
tradicional de rejeição fundamental da “ideia de um colapso” e assim traz
involuntariamente à evidência as pegadas que segue neste aspecto.
4. Os cavaleiros do apocalipse
A mitologização da
teoria do colapso corresponde à tentativa a ela associada de conferir mais uma
vez à tese do limite interno absoluto a reputação de simplesmente irracional,
antes de qualquer discussão baseada nos conteúdos. A afirmação de que a
polémica sobre a teoria da crise não passa de “questões de fé” (Initiative
Sozialistisches Forum 2000, 55) não só se furta à capacidade de fundamentação,
mas também leva necessariamente a uma classificação do problema em geral no
domínio do quase religioso. (24) Logo que a argumentação da teoria da
acumulação e da crise ultrapassa o limite da dor do marxismo vulgar, esta tem
de ser posta de lado como suposta “profecia” ou “fantasia de fim do mundo”, ultrapassando
a possível contra-argumentação. Este deslocamento é na prática apropriado para
compensar a própria insuficiência na análise teórica e apelar ao sentimento
pré-teórico.
Também a este
respeito não se pode deixar de fazer uma antologia. Já no início dos anos de
1990 a revista Gegenstandpunkt tentou
aproximar O colapso da modernização da
metafísica da história de Spengler. Segundo essas reflexões ele seria como “A decadência do ocidente – para a
esquerda” (Gegenstandpunkt 1992).
Três anos depois os marxistas da política lançam mais uma acha na fogueira. A
teoria radical da crise não passaria do “fim apocalíptico do capitalismo
mundial já há muito fantasiado” ((Ebermann/Trampert 1995, 51) e de uma ideia
correspondente ao pensamento das seitas religiosas: “Com a profecia do colapso
iminente do sistema capitalista mundial, por lhe faltar o trabalho produtor de
mais-valia, Robert Kurz já se aproxima mesmo das testemunhas de Jeová”
(ibidem).
Cinco anos depois
também Michael Heinrich retoma prazenteiramente esta desqualificação
apriorística da teoria de um limite interno absoluto da crítica da
dissociação-valor como suposta “profecia”, na sua acerba crítica ao Schwarzbuch Kapitalismus [O livro negro
do capitalismo]: “Para Robert Kurz a exposição histórica é… apenas um veículo
para apresentar novamente a sua profecia do próximo colapso do sistema
capitalista, incansavelmente repetida há dez anos…” (ibidem). Simultaneamente
com Heinrich também um crítico do lado liberal se permitiu ver no “Livro Negro”
um “quadro monumental dos cavaleiros do apocalipse do capitalismo” (Leuschner
2000).
Pelo mesmo diapasão
afina também dois anos mais tarde o corifeu da revista Argument, Wolfgang Fritz Haug: “Assim alinha Kurz entre os santos
dos últimos dias mais uma vez vêem uma oportunidade que no nosso tempo
conturbado. Nada menos que o apocalipse” (Haug 2000, 90). Um ano depois os
discípulos académicos de Heinrich estavam finalmente tão qualificados que
podiam reproduzir fervorosamente a opinião preconcebida sobre o “cenário
simplista da decadência” e o “apocalipse iminente” (Euskirchen/Lebuhn 2003) em
Robert Kurz. E ainda no primeiro semestre de 2008/2009 o seguidor de Silvio
Gesell, Prof. Gerhard Senft, apresentou na Wirtschaftuniversitat de Viena um
seminário com o título “O desejo da decadência. Pessimismo cultural na história
da modernidade” em cuja bibliografia se inclui também O colapso da modernização de Robert Kurz ao lado de Schopenhauer,
Nietsche, Spengler e Huntington.
Por pouco que se
possam ver entre si no restante, os santos da eterna capacidade do capital para
se auto-renovar e da “modernização” que prossegue eternamente, copiam-se uns
aos outros a ritmo anual (25) na onda contra a teoria radical da crise, para em
pose de crítica iluminista da religião clamarem pela proscrição da “profecia do
fim dos tempos” (Haug) desta desagradável elaboração teórica. A reformulação da
crítica da economia política de Marx, incompatível com o seu próprio
entendimento identitário, tem de ser forçosamente subsumida na tradição
religiosa milenar do quiliasmo ou milenarismo segundo o padrão do apocalipse de
João, a fim de rejeitar a exigência teórica (26).
Não pode deixar de se
referir que o tom de tais atribuições denunciatórias subiu depois do último
desabar da crise. O moderado realismo académico de esquerda, que se dá por
esclarecido e considera todos os outros inferiores, teve de elevar a dose da
contra-indicação emocional, a fim de manter afastada do discurso “científico” a
teoria radical da crise, como absolutamente indigna de ser discutida: “A…
imagem … do colapso pode ser feita recuar na história a muitas velhas imagens:
dilúvio, Sodoma e Gomorra e o apocalipse e o reino de Deus que só pode chegar
após uma ruína geral acompanhada dum grande ajuste de contas. A sua forma
burguesa foi levada a cena em O
Crepúsculo dos Deuses por Richard Wagner, o revolucionário falhado de 1848:
já não é a fúria do Senhor que põe fim à humanidade corrompida, fim após o qual
é possível um novo começo, mas são os dominantes que o provocam, ao não se
entenderem com as suas leis. Em todo o caso mantém-se em geral uma aniquilação
fundamental, possivelmente com o mundo em chamas. Depois disso uma outra raça
‘pura’, sem culpa, pode construir um mundo novo. Não admira que os nazis tenham
podido começar tanta coisa com Wagner, desde Rienzi até ao Anel. Em
Marx não se encontram fantasias destas” (Resch/Steinert 2009, 269).
Em termos de conteúdo
isto já não pode ser levado a sério, se uma fundamentação na teoria da
acumulação ligada à teoria de Marx é assim etiquetada como ciência
pseudo-religiosa de modo arbitrário com cadeias de associações selvagens e
subsumida na linha da tradição das irracionais ideologias de aniquilação modernas.
De notar também que Resch/Steinert nunca chamam pelo nome a teoria da crise
assim examinada, como fantasma no abismo da história das ideias, mas pretendem
apresentar a “imagem” do “colapso” numa generalização sem contornos, como manifestação
da opção wagneriana pelo “mundo em chamas” na esquerda radical dos últimos 100
anos. A perfídia de tais visões de fantasmas vai ao ponto de nesta cadeia
associativa considerar tacitamente a “teórica do colapso” Rosa Luxemburgo como
precursora dos nazis. Ela tem mesmo de ser sempre de novo espancada até à morte
pelos cúmplices social-democratas. A que ideia de via oficial
parlamentar-sindical para a negociação confortável da contratação social, na
verdade há muito obsoleta, se deve esta invectiva, sobre isso Resch/Steinert
também não deixam qualquer dúvida. Para eles a “imagem” de Marx “do
‘revolucionamento’, ou seja (!), da lenta alteração profunda da sociedade que
produz gradualmente (!) os elementos de um novo modo de produção” dá-se mal de
todo “com o apocalipse e o crepúsculo dos deuses” (ibidem, 269). Só que, com
ele já sempre lento e gradual, assim estamos a reconhecer o capitalismo como
belo ónibus da história, ou não será? Em Marx, de facto, o “revolucionamento”
soa um pouco diferente, tanto no que respeita à dinâmica capitalista objectiva
como no que respeita à crítica prática.
No fundo, a projecção
dum “apocalipse” e de “fantasias do fim do mundo” etc. quase religiosas sobre o
contexto de fundamentação da teoria radical da crise é traiçoeira. Na realidade
esta fantasia reside inteiramente no lado dos opositores: eles é que precisam
de entender o limite interno absoluto determinado conceptual e analiticamente
do modo capitalista de produção e de vida historicamente limitado como “fim do
mundo” simplesmente, tal como os defensores oficiais desta ordem, porque este
mundo afinal também é o mundo deles e eles não conseguem nem querem ir além
dele. Por isso, também para eles a crítica categorial é para abandonar a favor
do que interessa (ver sobre isso com mais detalhe cap. 28). Depois do
capitalismo, aliás, patriarcado moderno produtor de mercadorias e do seu
contexto formal de socialização negativa, não pode nem deve vir nada de
diferente, pois qualquer alternativa à partida só pode e “está autorizada” a ser
pensada nestas formas basilares ou nas suas meras sub-rogações. Como se deve
descrever tal atitude senão como uma “questão de fé”? Mesmo antes de formularem
as suas próprias fundamentações teóricas, estes realistas presunçosamente
“esclarecidos” sobre a situação já manifestaram a sua própria fé relativamente
à possível eternização deste seu mundo. Eles é que provam ter um irracional
“medo do apocalipse” pré-teórico perante a fundamentação teórica de um limite
interno histórico do capital, porque a sua consciência está presa nas formas
fetichistas. (27)
Notas
(1) O termo Krisis representa já no título da revista teórica original o
auto-entendimento no contexto de uma ruptura histórica. Esta marca foi usurpada
pelos representantes da crítica do valor truncada através de um “golpe” baseado
no formalismo associativo. O que seria irrelevante se toda a nova abordagem
teórica no campo posterior da crítica social não continuasse a ser designada de
modo meramente formal como “teoria da Krisis” (b), embora este nome fosse
apenas história do projecto original, devendo a continuação do desenvolvimento
da crítica da dissociação-valor desde 2004 ser encontrada sobretudo na nova
revista teórica EXIT. Isto também tem algo a ver com o facto de a crítica do
valor da Krisis residual, não
original e praxeologicamente reduzida, ser frequentemente vista com gosto nas
iniciativas congressistas da esquerda residual como parceiro de treino “pouco
exigente”. As questões teóricas fundamentais e o confronto de conteúdos
associado a elas, no entanto, não podem ser abolidos do mundo e acabarão por
determinar o desenvolvimento do debate, o que também se repercutirá cada vez
mais na percepção do público interessado na crítica social.
(2) Com isto não se
pretende dizer que a exploração filológica da massa de textos de Marx seja
irrelevante. O aspecto filológico, no entanto, tem de ser colocado no quadro de
uma análise concreta do desenvolvimento social. Esta ligação foi-se perdendo em
grande parte, como de seguida se mostrará. O que hoje é considerado como teoria
de esquerda está separado entre “pura” filologia de Marx, por um lado, e
análises sócio-económicas superficiais sem remissão categorial, por outro.
Deste modo não pode ser honrada a pretensão dialéctica da teoria de Marx.
(3) Num nível de
desenvolvimento mais elevado, estamos hoje confrontados com uma situação
semelhante à que Karl Korsch formulou no início dos anos de 1920, na sua
pesquisa sobre Marxismo e Filosofia (1923)
relativamente ao marxismo do movimento operário de então. Korsch fez aí a
aplicação da teoria histórico-crítica de Marx ao desenvolvimento do próprio
marxismo. Ele colocou o marxismo da II Internacional com os seus conflitos
(ortodoxia e revisionismo) no quadro da história social capitalista e mostrou
que neste processo tinha amadurecido uma ruptura que teria de conduzir a uma
nova determinação do carácter revolucionário desta teoria. Do ponto de vista de
hoje, tratava-se de um corte que abrange a época das duas guerras mundiais, bem
como a crise económica mundial de entre guerras, e no qual o próprio marxismo
do movimento operário no seu conjunto (incluindo mesmo o pensamento de Korsch a
ele ainda agarrado) teria de esbarrar nos seus limites históricos. Na história
do pós-guerra, as épocas do “milagre económico” de curta duração e da posterior
economia pós-moderna de endividamento e bolhas financeiras constituíram uma
estabilização aparente do capitalismo que em muitos aspectos apresenta traços
semelhantes aos da época anterior à I Guerra Mundial. Tal como então o marxismo
do movimento operário se desenvolveu, estagnou no terreno do capitalismo e
depois foi esmagado pelo desenvolvimento da crise, também os seus derivados e
modelos em fim de linha desde os anos de 1960 puderam ser arrastados no
desenvolvimento capitalista do pós-guerra aparentemente ininterrupto e
irresistível e são hoje igualmente esmagados pelo novo desabar histórico da
crise. É verdade que na chamada nova esquerda inicialmente houve de facto
começos de um progresso que foi impulsionado sobretudo pela teoria crítica
(Theodor W. Adorno, Alfred Schmidt). Estes começos no entanto foram engolidos
pelo paradigma tradicional no mainstream
da esquerda e só foram agarrados de novo de maneira diferente com o esforço de
elaboração teórica da crítica da dissociação-valor. O postulado de uma
renovação e desenvolvimento da teoria de Marx exige agora, no entanto,
diferentemente de para Korsch, já não uma reformulação da “revolução
proletária” fundada na ontologia do trabalho e truncada em termos de classes
sociais e de “fetiche sexual”, mas sim a “crítica categorial” das formas
fetichistas basilares sobrejacentes às classes, incluindo a relação de
dissociação sexual e a própria razão burguesa; uma crítica que já não pode ser
reduzida ao paralelograma das “relações de forças” no invólucro desta forma. A
questão levantada por Korsch há quase 90 anos coloca-se assim de uma maneira
completamente diferente. Esta exigência é sentida como insuportável pelo mainstream da esquerda residual.
(4) Esta caracterização
refere-se sobretudo ao plano categorial da crítica marxiana da economia
política, como se mostrará de seguida com mais detalhe. Abordagens da teoria da
crise, como por exemplo a da chamada teoria da regulação, há muito que fizeram
desaparecer este plano e pressupõem, tal e qual como a economia política, as
formas de existência capitalistas (para a crítica respectiva ver Kurz 2005,
423-452 e também capítulo 16).
(5) A formulação
destas oposições já não tem qualquer fundo discursivo coerente nem pode
portanto referir-se a um entendimento geral da teoria de Marx como ainda
acontecia nos anos de 1970. A geração mais jovem de gente interessada na
crítica social emancipatória, que pretenda hoje orientar-se no campo do debate,
ou se depara com este como paisagem em ruínas dos marxismos, sem conhecimento
da história de vida da sua topografia, e/ou foi socializada individualmente em
discursos diversos de correntes e de grupos que há muito correm uns ao lado dos
outros. Isto dificulta o acesso aos problemas teóricos centrais e não permite
qualquer exposição imediata e naturalmente na sequência de uma leitura de Marx (que
apenas lentamente está a recomeçar), exposição para a qual em grande parte
faltam as condições. Justamente por isso é importante frisar que não se trata
de uma luta identitária de demarcação ou de uma disputa por dá-cá-aquela-palha,
mas sim de questões teóricas fundamentais no entendimento da situação histórica,
sem cujo esclarecimento também a chamada práxis da crítica do capitalismo já
não valerá grande coisa.
(6) Aqui a
diferenciação, sem dúvida sociológica, na senda da economia das bolhas
financeiras e da globalização que já não consente qualquer determinação de um
“sujeito de classe” homogéneo, é percebida apenas positivistamente no seu
ser-assim, sem referir estas “diferenças” ao contexto categorial sobrejacente
da constituição capitalista e à sua dinâmica interna (mesmo no que diz respeito
aos padrões de digestão ideológica, por exemplo, ao longo de linhas de
separação étnicas ou pós-religiosas). No pós-operaismo este contexto dialéctico
foi substituído pela vaga determinação ontológica da “multitude”, na qual são
subsumidas superficialmente situações sociais “multicolores” e posições
concorrenciais e que é arvorada em meta-sujeito imaginário.
(7) Na mesma medida
em que a referência positivamente ontologizante ao “trabalho” e à “classe
operária criadora de valor” se torna ela própria obsoleta através do
desenvolvimento capitalista, o paradigma da “luta de classes” transforma-se sub-repticiamente
num combate ideológico de rectaguarda pelos interesses da classe média (por
exemplo, através da afirmação de um “trabalho imaterial de conhecimento”), em
que as novas camadas inferiores marginalizadas surgem mais como massa de
manobra. Embora o contexto de “trabalho” e produção de mais-valia real esteja
rompido, a velha “luta pelo reconhecimento” do movimento operário no terreno da
valorização do capital é deslocada de modo meramente formal para os “produtores
de conhecimento” da nova classe média crescentemente precarizada, em vez de se encarar
a crítica categorial do contexto sobrejacente da forma capitalista que abrange
toda a sociedade.
(8) Sintomático da
relativa marginalização da teoria da crise já no neomarxismo dos anos de 1960
foi o facto de, no centésimo aniversário da 1ª edição de O Capital (1º volume), ter saído na editora Suhrkamp uma coleção de
ensaios com o título Consequências de uma
teoria. Ensaios sobre “O Capital” de Karl Marx (Hofmann, Mohl e outros,
1967) onde nenhum dos textos incluía explicitamente a temática da crise. Em
primeiro plano estavam discussões filosóficas e sociológicas.
(9) O conceito de
“praxeologia” foi inicialmente cunhado pelo sociólogo francês Alfred Espinas no
século XIX e designava uma teoria geral da acção humana. Pode ser considerado
como sinónimo da teoria sociológica da acção. Há aqui uma tendência para
entender a acção apenas na sua imediatidade, ou seja, abstraindo da
determinação da sua forma na história e da sua constituição fetichista. Por
isso a abordagem “praxeológica” também tem uma grande importância na economia
política subjectivista (o que é particularmente claro em Ludwig von Mises). No
pensamento marxista entrou com o rótulo de “filosofia da práxis” (Gramsci,
Bloch). Também aqui as relações formais objectivadas e o seu carácter
fetichista foram remetidos para segundo plano através de um conceito de práxis
tão geral como difuso. O entendimento das relações sociais reduzido de modo
cambiantemente “praxeológico” ou “à maneira da teoria da acção” tem uma longa
carreira feita na esquerda (como já se viu e ainda se exporá abaixo). Serve sempre
para fazer imputar à acção constituída de maneira capitalista uma tendência já
em si transcendente. Aqui em primeiro lugar a caracterização “praxeológica” é
entendida como amarrar da teoria a um sujeito da acção imediatamente imanente (classe,
partido, sindicato, movimento, economia alternativa pequeno-burguesa etc.). Já
neste sentido a crítica da dissociação-valor, enquanto crítica radical da
constituição e da pré-formação históricas da acção, é também radicalmente
anti-praxeológica, o que não significa que a acção “dentro” do invólucro
capitalista seja abstractamente negada. Mas o imperativo da acção não pode restringir
a crítica ao interior deste invólucro, como era o caso no marxismo do movimento
operário. Nas correntes marxistas residuais ou pós-marxistas a redução praxeológica
ainda é reforçada, surgindo as conjunturas sociais, políticas e “do espírito do
tempo”, bem como o desenvolvimento capitalista superficial, como critério e
campo de referência delimitador da reflexão.
(10) Quase 40 anos
após a saída da colectânea comemorativa do centésimo aniversário da 1ª edição
de O Capital surgiu novamente uma
colectânea de resumos sobre a leitura d’ O
Capital (Hoff/Petrioli/Stützle/Wolf 2006) em que a teoria da crise é tão
pouco mencionada como antes, embora o problema tenha sido tornado entretanto um
tema essencial fora do marxismo residual académico pela crítica da
dissociação-valor. Esta nova abordagem, no entanto, surge justamente sob o
título “Ler ‘O Capital’ de novo” apenas marginal e pejorativamente no que diz
respeito à avaliação metodológica, enquanto a teoria radical da crise é
completamente silenciada. A obnubilação da teoria da crise perdeu aqui, por
assim dizer, a inocência naïf de
1967.
(11) Não falo aqui de
análises parciais mais ou menos empíricas, nas quais um conceito de crise quase
sempre sociologicamente reduzido prolonga a sua existência marginal, mas sim do
plano categorial da teoria da crise e da acumulação de Marx. A esse respeito
encontra-se cada vez menos; os últimos trabalhos significativos, em que a referência
é feita acidentalmente e sem conexão sistemática, foram há décadas atrás.
(12) Na extensa
monografia publicada recentemente sobre a Nova Leitura de Marx na RFA desde
1965, de Ingo Elbe, não há consequentemente qualquer rasto de reflexão sobre a
dinâmica capitalista (Elbe 2008). Embora Elbe na sua exposição faça referência
à elaboração teórica da crítica da dissociação-valor (naturalmente sobretudo
demarcando-se), também aqui a teoria radical de crise como seu componente
essencial é sistematicamente ignorada, com o que, no entanto, são furtadas à
sua dimensão essencial as asserções sobre o conceito de substância da teoria do
valor e o debate sobre o tema. Em vez disso temos a baixa denúncia retórica;
assim Elbe acha que é uma polémica engraçada designar como “marxismo metafórico
de folhetim” (ibidem 252) a crítica da dissociação-valor (ignorando também
naturalmente “com soberania” androcêntrica a teoria da relação de dissociação
sexual) e falar do “estilo dos textos de Kurz que mal dissimulam o seu passado
ML”. Não sei que passado tem a história da socialização de esquerda de Elbe,
nem isso me parece de interesse; mas em todo o caso no seu “estilo” poderá
reconhecer-se aquela complacência académica que começa logo às caneladas com
hostilidade aos conteúdos quando se trata de defrontar um conteúdo que ameaça
rebentar com o enquadramento dessa complacência filológica.
(13) A pouca
importância da reflexão sobre a teoria da crise em sentido estrito e em sentido
lato para Heinrich resulta desde logo da curta extensão que ela assume nos seus
escritos. Na obra principal de Heinrich Die
Wissenschaft der Wert [A ciência do valor] (2003, 3ª edição) o tema
concentra-se em 16 páginas e na sua Introdução à crítica da economia política
(2004) em apenas 9 páginas. Para a versão de Heinrich da Nova Leitura de Marx a
teoria da crise é bem claramente a criança enjeitada da análise marxiana do
capital. Pelo contrário são bem extensas em Heinrich as explanações em que ele
nega justamente os conceitos de Marx que constituem os pressupostos elementares
da teoria da crise (conceito de substância material, queda tendencial da taxa
de lucro).
(14) O debate detalhado
do conceito marxiano de substância com Heinrich, Postone e outros constitui
parte do trabalho da crítica da dissociação-valor para a reformulação da teoria
radical da crise; ele será referido de seguida, mas deve ser detalhadamente
elaborado no âmbito do projecto de livro designado Trabalho Morto referido no início, porque não caberia nos limites da
propedêutica aqui apresentada. Uma primeira abordagem da crítica à revisão do
conceito marxiano de substância foi já apresentada (Kurz 2005, 214-234; sobre
outros aspectos da discussão com Heinrich ver também Ortlieb 2009). No
essencial a questão é que Heinrich rejeita a definição material marxiana de
substância do trabalho como dispêndio formalmente determinado de energia humana
(“nervo, músculo, cérebro”) e faz com que o conceito de “trabalho abstracto”
fique absorvido na abstracção meramente funcional da troca na esfera da
circulação; esta abstracção sem conteúdo funcionalmente reduzida, no entanto,
não consegue esclarecer a quantificação na forma do dinheiro, que só é
conseguida com truques.
(15) A necessária
crítica da ideologia, cujo significado é acentuado com razão contra uma
ontologia positiva da classe explorada ou simplesmente dos “pobres” e contra um
mero relativismo das ideias, já não tem aqui qualquer relação com a dinâmica
objectivada do capital. É como se toda a relação consistisse em “ideologia”.
Mas a crítica da ideologia torna-se oca se já não conseguir explicar a que se
refere verdadeiramente a formação da ideologia. Por isso a crítica da ideologia
não pode manter-se por si ou apresentar-se como uma espécie de “especialidade”
própria, enquanto posição para além e em contradição com outras posições. Tal
reducionismo na crítica da ideologia é ele próprio ideológico ao mais alto grau
e tem de ser objecto da correspondente crítica.
(16) O
“anti-substancialismo” de Michael Heinrich e a revisão que lhe está associada
da determinação basilar da análise marxiana da forma do valor não se limita a
estar conforme com a ideologia pós-moderna; ele também é estimado na esquerda
porque promete à partida excluir uma teoria da crise que se refira à diminuição
absoluta da substância do trabalho real e objectivamente “válida”.
(17) Mais uma vez
Michael Heinrich assumiu aqui uma posição de destaque. Embora no caso das
análises da crítica da dissociação-valor apresentadas nos anos de 1990, por
exemplo sobre o colapso do socialismo real ou sobre a história das três
revoluções industriais, se trate claramente de um plano de exposição diferente
do da filologia de Marx, Heinrich julga poder afirmar, antes de qualquer argumentação
com base no conteúdo, que aí se exprime “um trato superficial com as categorias
de Marx”, as quais “frequentemente” surgiriam “apenas como floreados” (Heinrich
2004, 8). O Capital de Marx pelo
contrário seria muito mais actual que tal “obra armada em pretensiosa”
(ibidem). Naturalmente que esta acusação jamais provada de “superficialidade”
(sempre com um olho virado para a teoria radical de crise) tem um carácter
preventivo em termos de política teórica, que denuncia uma clara posição
frontal. Heinrich aqui não só fala pro
domo como fala também por todo o marxismo residual e pós-marxismo universitários
que há muito descobriram a crítica da dissociação-valor como inimigo comum. Abstraindo
da incompatibilidade dos conteúdos trata-se também de que a scientific comunity de esquerda, seja
qual for o seu estado de segurança ou de precariedade, gostaria sobretudo de
resolver os problemas teóricos entre si e afastar todos os combatentes que não
tenham o iniludível pedigree
académico.
(18) Heinrich
coloca-se assim na pose do professor não autoritário que não faz valer perante
os seus clientes qualquer conhecimento prévio apenas posterior ou diferente das
afirmações de Marx. Pois, no que respeita a O
Capital, seria grande o perigo de que “tivesse sido lido através dos óculos
do comentador e por isso se acreditasse reencontrar no texto justamente aquilo
que o comentador tivesse afirmado” (Heinrich 2008a, 28). Contra isso ele
recomenda “outra espécie de comentário” que consiste em “referir-se
exclusivamente ao texto apresentado” (ibidem) de modo que “os argumentos expostos
possam ser imediatamente examinados
no respectivo texto pelo leitor, não tenham de ser objecto de fé e o comentador
não se torne uma autoridade” (ibidem, destaque de Heinrich). Ora, primeiro,
qualquer leitura já é uma interpretação, uma vez que não ocorre sem
pressupostos. Segundo, o pré-conhecimento do comentador de modo nenhum é
afastado através da introdução ao texto, principalmente se esta vem acompanhada
com a autoridade estrutural dos volumes de introdução elaborados. Heinrich
impinge assim ao entendimento a sua interpretação das “desfocagens da teoria de
Marx” (ibidem, 29) já com base naquilo que os participantes no curso,
descontraídos e completamente ignorantes, postos “imediatamente perante o
texto” na posição a tomar e antes de mais argumentativamente desamparados, de
modo que estes então mais que nunca reencontrem no texto justamente aquilo que
o comentador tinha afirmado – no entanto acreditando ser um “pensamento
próprio” a que foi dada uma pequena ajuda. Esta espécie de introdução pseudo-anti-autoritária
é talvez a mais pérfida espécie de doutrinação, sugerindo uma discussão do
desenvolvimento conceptual só aparentemente sem pressupostos, como de resto há
muito é habitual nas concepções pós-modernas da pedagogia e da gestão. A
“apropriação” supostamente bem cuidada dos conceitos fundamentais de Marx (justamente
os relevantes para a teoria da crise) ocorre assim ironicamente na forma da
crítica e dissolução especificamente heinrichianas dos seus fundamentos, o que
se pode designar como versão pós-moderna do “funil de Nurenberg” (c).
Particulamente susceptível a isto é naturalmente uma determinada espécie de
inteligência reprodutiva de “animais aprendizes” académicos que supostamente apenas
estudam os clássicos “justa e completamente no texto” e não querem ver que
assim já se estão a mover num campo minado de interpretação e debate, do qual
ninguém pode abstrair impunemente.
(19) No seu debate
com a teoria radical da crise em 1999/2000, Heinrich queixa-se da insinuação de
que ele “… argumentaria positivistamente, aduziria objecções tipicamente
positivistas, teria transformado Marx num economista positivista etc. O positivismo
fora inicialmente uma orientação epistemológica que pretendia partir apenas dos
complexos de percepção imediatamente ‘dados’. No seguimento da chamada
‘polémica do positivismo na sociologia’ o positivismo foi transformado no mainstream da esquerda num insulto em
grande parte sem conteúdo, com que se atacava indiscriminadamente não só a
ciência ‘burguesa’ mas também se gostava de atacar as interpretações do
marxismo que se afastavam da própria” (Heinrich 2000). O seu adversário de então,
Norbert Trenkle (hoje representante da crítica do valor redutora e “aberta”
para todos os lados da Krisis residual), não estava de facto em posição de
chamar concretamente pelo nome o positivismo de Heinrich. Mas esse positivismo
consiste justamente no facto de, para Heinrich, as categorias abstractas do
capital e as suas manifestações empíricas se confrontarem de modo meramente
exterior; estas últimas dissolvem-se então, para usar as suas próprias
palavras, em “dados imediatos” de “complexos de percepção” empíricos;
justamente num sobe e desce entendido como cíclico em falsa imediatidade ou em
rupturas estruturais passageiras, cujo contexto como processo sobrejacente em
desenvolvimento deixa de ser visto. A diferença entre “crise cíclica” e “crise
geral” é indicada na sua Ciência do Valor
de modo meramente abstracto (Heinrich 2003, 334 sg.) e igualmente subsumida na
mera irregularidade dos fenómenos aparentes separados da essência (sobre isto
ver a discussão mais detalhada nos capítulos 10, 12, 13 e 20). De seguida ainda
vamos encontrar frequentemente em Heinrich este pensamento positivista
completamente preso ao concreto no contexto da filologia de Marx, o qual, para
não dizer pior, limita a sua capacidade de previsão e não só. O que também tem
algo a ver com o facto de esse pensamento, ao contrário do caso de Reichelt e
Backhaus, provir não de Adorno, mas sobretudo de Althusser e do seu conceito
positivista de ciência, no qual a problemática do fetiche não por acaso foi
suprimida.
(20) Pelo menos neste
ponto, o último professor emérito de esquerda e o último estudante de esquerda estão
de acordo com a famigerada Sociedade Mont Pèlerin, uma mafia ideológica em que
se congregou a nata do neoliberalismo. Na sua última conferência em Nova
Iorque, já no meio do crash global
dos mercados, este ajuntamento académico-político, agora caído no ridículo, deu
provas inconscientes de coincidência com a esquerda comum, não menos aflita com
a crise: “Será esta agora a crise definitiva do capitalismo? – perguntou um dos
participantes, para logo ele próprio dar a resposta: não. Antonio Martino, antigo
ministro italiano dos negócios estrangeiros e da defesa, sublinhou esta atitude
dizendo que já Karl Marx tinha vaticinado o colapso iminente do capitalismo,
estando enganado nesta matéria há cento e cinquenta anos, contrastando, por
exemplo, com o prognóstico de vários liberais que já por volta do ano de 1980
tinham previsto o fim da União Soviética e a viragem da China para a economia
de mercado...” (Neue Zürcher Zeitung, 9.4.2009). No entanto, a esquerda está na
dianteira em termos de ignorância, na medida em que nem sequer pressentiu o
primeiro acto do fim de uma época e até hoje não o compreendeu.
(21) O colapso da modernização (Kurz 1991)
foi o título de um livro que, da perspectiva da nova teoria da crise, colocava o colapso de facto
ocorrido do “socialismo real” no contexto de uma crise geral do mercado mundial ainda iminnente. Mas a esquerda mainstream politiqueiramente anquilosada
simplesmente não soube nem quis pegar no quadro teórico da crise assim
delineado. Na verdade, perante os factos puros e simples, falava-se pela rama
(mesmo no discurso burguês oficial) de um “colapso” do sistema reputado de contrário
que, no entanto, era imputado a causas notoriamente subjectivas (defeitos da
economia planificada pela burocracia de Estado). Tal não devia aplicar-se em
caso algum ao capitalismo mundial, visto que se fazia sistematicamente vista
grossa do seu nexo interno com a “modernização atrasada” do Leste.
(22) Numa atitude
que, a bem dizer, é de fuga para a frente, a falsa imediatidade temporal é
invertida e voltada contra a teoria radical da crise, por exemplo pela
mistificadora ideologia “anti-alemã”: “Nem sequer pretendemos pôr em causa a
eventualidade de o colapso poder ocorrer, talvez mesmo já para a semana (!) –
mas o juízo categorial de que está para ocorrer no tempo mais próximo (ou
noutro qualquer)... não está coberto por absolutamente nada” (Initiative
Sozialistisches Forum 2000, p. 81). Na medida em que o possível “colapso” aqui
não só é, por assim dizer, reduzido a um acontecimento histórico quotidiano,
mas é entregue à responsabilidade de uma contingência absoluta, pensam-se
libertados de qualquer necessidade de uma fundamentação no âmbito da teoria da
acumulação. Esta mistificação é devida à invocação enfática pelos
“anti-alemães” da razão iluminista, em cujas categorias permanece realmente
impensável um limite interno determinável em termos históricos das suas
próprias bases sociais.
(23) Para Ingo
Stützle, como representante do marxismo residual de Berlim, a teoria radical da
crise vai dar “... à afirmação absurda de que o marxismo do movimento operário
não poderia ter querido nenhuma teoria da crise ‘como deve ser’, visto que esta
teria posto em causa a identidade ‘das operárias e dos operários’. Este facto
realça uma vez mais a dificuldade em clarificar o que a teoria da crise de Kurz
tem de particular ou de ainda encontrar alguma forma de a levar a sério”
(Stützle 2001). É evidente o que é “absurdo” para Stützle: foi a identificação
dos representantes do marxismo do movimento operário com o “trabalho”, não
reconhecido como categoria funcional e substância do capital, mas ontologizado,
que impediu que a dimensão da teoria da crise de Marx referida a uma redução
absoluta da substância do trabalho “válida” em termos capitalistas pudesse ter
sido tornada fértil; isto sem falar do facto de que esta qualidade da dinâmica
capitalista pura e simplesmente ainda não tinha sido alcançada em termos
históricos. Se, para Stützle, permanece incompreensível a diferença decisiva
entre uma teoria da crise assente na ontologia do trabalho e outra que critica
a ontologia do trabalho, é problema seu.
(24) O que
naturalmente já não tem absolutamente nada a ver com Marx, cuja obra no seu
conjunto estaria assim longe de se ter ocupado com tais “questões de fé”
insignificantes. À falta de fundamentação dos ideólogos “anti-alemães” corresponde
o facto de esta ruptura não ser nomeada ou sequer referida; tal e qual como se essa
afirmação correspondesse com a mais elevada autenticidade à crítica da economia
política.
(25) Tirei aqui ao
acaso apenas algumas afirmações destacadas deste tipo a título de exemplo; semelhantes
ataques baratos surgem nos últimos 15 anos transversalmente a todo o espectro
da esquerda com uma frequência cansativa e aparentemente gozam de grande
popularidade num empreendedorismo de círculo que não quer perder a sua pátria
da ideologia da modernização.
(26) O que é
simplesmente atribuído à análise conceptual da teoria radical da crise pelos
teóricos do marxismo residual e do pós-marxismo ecoa-lhes entretanto como
estranho eco dos protestos contra a cimeira da crise dos agentes estatais.
Assim se diz numa reportagem sobre a cimeira do G-20 em Londres no princípio de
Abril de 2009: “À medida que a primeira fila do protesto avança pela Princes
Street os manifestantes gritam atrás duma figura vermelha dum cavaleiro do
apocalipse: ‘Eliminem o dinheiro’…” (Handelsblatt, 02.04.2009).
(27) Uma tematização
por vezes involuntariamente cómica do problema é apresentada pelo velho
militante de 68, Lutz von Werder, antes um esforçado defensor da “educação
anti-autoritária” e entretanto convertido a uma espécie de espiritualismo
(“Como encontrar a minha própria religião?”). Numa “Crítica da consciência
apocalíptica” ele aconselha contra o “medo profundo”, além de “terapia da luz”
bem como “treino de gestão do medo”, também medicamentos como “benzodiazepinas,
beta-bloqueadores, inibidores da monoaminoxidase, neurolépticos” etc. (ver
Werder 2009, 394). Talvez os porta-vozes do marxismo residual e do pós-marxismo
devessem experimentar esta medicação quando tentados a olhar para os abismos da
teoria radical da crise.
Notas do tradutor
(a) O período
Biedermeyer (1815-1848) está associado à restauração alemã e é marcado pelo
conservadorismo na política, na literatura e na arte. Herr Biedermeyer é o título de uma poesia do poeta revolucionário
Ludwig Pfau, de 1847, denunciando a mentalidade tacanha e a dupla moral do Sr.
Biedermeyer (Nota trad.)
(b) Krisis também se usa ainda em alemão
para significar crise, de par com Krise (Nota trad.)
(c) Referência jocosa
da literatura alemã em que o conhecimento é enfiado na cabeça do estudante por
um funil (Nota trad.)
Bibliografia
Nota editorial: as
referências bibliográficas foram elaboradas posteriormente a partir das
citações encontradas no texto. Poderão ocorrer falhas.
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Editora: Horlemann Verlag, Heynstr. 28, 13187 Berlin, Deutschland, Tel +49 (0) 30
49 30 76 39, E-mail: info@horlemann-verlag.de, http://www.horlemann.info.
Tradução de Boaventura Antunes (05/2014).