Anselm Jappe
OS SITUACIONISTAS E A SUPERAÇÃO DA ARTE: O QUE RESTA DISSO APÓS CINQUENTA ANOS?
A Internacional Situacionista, ou, de modo abreviado, a I.S., foi
criada há mais de 53 anos, em 1957, existindo até 1972; a ela pertenceram, ao
longo de sua existência, setenta pessoas ao todo (ao fim e ao cabo, restaram
apenas três dentre elas). Seu nome acha-se intimamente ligado ao do francês Guy
Debord, o qual consistia, já, na figura central de sua organização precursora, a
saber: a Internacional Letrista. Em 1992, quando reescrevi, sob a forma de um
livro, meu trabalho de doutorado na Itália sobre Theodor W. Adorno e Debord – a
primeira monografia a ser publicada sobre Debord
[1]-, este último e os situacionistas eram conhecidos apenas
por pequenos círculos. Nas universidades, nas academias de arte e no cenário
cultural, eram ou efetivamente desconhecidos ou haviam sido totalmente
silenciados. Deparar-se com alguém que os conhecia era o mesmo que se deparar,
de modo inesperado, com outro “adepto”.
Não se deve queixar a esse respeito: suas estratégias, para fazer
oposição à apropriação espetacular funcionaram amplamente até a morte de Debord,
no final de 1994. Desde então, o interesse pelos situacionistas explodiu, por
assim dizer. De acordo com uma estatística, Debord é inclusive o terceiro autor
freqüentemente mais citado nos periódicos franceses, ainda que isso se dê apenas
em virtude do emprego inflacionário do conceito, reduzido à condição de slogan,
de “sociedade do espetáculo”, título de sua obra principal publicada em 1967.
Na Alemanha, o interesse pelos situacionistas permaneceu um tanto mais modesto,
mesmo em comparação com o mundo anglo-saxão – as razões disso não devem ser
discutidas aqui e agora.
O verdadeiro mito que hoje envolve os situacionistas, e o qual eles
mesmos, de sua parte, trataram cuidadosamente de erigir, baseia-se sobretudo na
imagem de terem sido a mais “radical” e, ao mesmo tempo, “derradeira vanguarda”,
a última tentativa, do ponto de vista histórico, de unir a arte vanguardista com
a política de vanguarda. Essa heroização da I. S. atende, sem dúvida, a uma
necessidade generalizada numa época em que já não há muita coisa a ser admirada.
No entanto, ela não é infundada: após mais de cem anos, a busca pela união entre
crítica social e crítica artística decerto havia adquirido o seu ápice com a I.
S. - mas também seu ponto final.
A história das vanguardas artísticas, as quais tencionavam mudar o
mundo e a vida, sendo que isso justamente mediante a mudança da linguagem das
formas, e não por meio de conteúdos supostamente revolucionários das antigas
formas – tal como no caso do assim chamado realismo socialista -, foi uma
história curta, durando pouco mais de sessenta anos. Indubitavelmente, teve seu
início com o Manifesto futurista, de Marinetti. Por mais questionáveis que os
conteúdos deste último possam hoje se nos apresentar, é preciso reconhecer,
todavia, o fato de que a estrutura e a auto-compreensão das vanguardas já são
amplamente definidas por Marinetti, e, nesse sentido, os dadaístas,
surrealistas, letristas e situacionistas não lhes acrescentaram muito mais
coisas.
Para os situacionistas, a arte não se achava subordinada à política, à
diferença dos então amplamente disseminados “artistas engajados”, os quais, em
geral, deixaram-se explorar pela máquina stalinista. Enquanto os surrealistas no
início dos anos trinta, num momento um tanto infeliz, denominaram sua segunda
grande revista “Le surréalisme au service de la révolution”, os situacionistas
anunciaram, mais tarde, que para eles se tratava precisamente do contrário, isto
é, da “revolução a serviço da poesia”. Na última fase da I. S. (a partir de
1966), o tema tratado era basicamente o da revolução social, sendo que, à época,
o público ficou desde logo com essa imagem da I. S., a saber, uma espécie de
seita de ultra-esquerda. Os adeptos dogmáticos, chamados de “pró-situacionistas”,
que em diversos países eram praticamente os únicos que ainda falavam abertamente
sobre os situacionistas, referiam-se única e exclusivamente à herança política.
Também eles conheciam os inícios e as formas prévias da I. S., quer dizer, o
movimento letrista, o grupo de artistas Cobra etc. apenas a partir do “ouvir
dizer”. De fato, até cerca de 1985, os escritos pertencentes a esse período eram
praticamente inacessíveis. À época, o mote da “realização e superação da arte”
atuava, sobretudo, como uma longínqua pré-história da crítica do espetáculo e do
maio parisiense. O interesse pelo aspecto “artístico” da história situacionista
irrompeu, como que repentinamente, por volta de 1989, por ocasião de uma grande
exposição no Centre Pompidou, em Paris – que daí seguiria para Londres e Boston
–, e também com o livro Lipstick Traces, de Greil Marcus. Após a morte de Debord,
em 1994, a recepção – enormemente aumentada –, reverteu-se em seu contrário: a
fase política passou a significar doravante tão somente uma concessão ao
espírito da época, ou, então, em todo caso, algo insignificante. Hoje, a fase
inicial da I. S., que vigorou até 1962 e que se caracteriza, pois, como a
tentativa de superar a arte a partir do interior da própria arte, monopoliza
amplamente a recepção
As distintas grandes exposições sobre os situacionistas que foram
celebradas nos últimos anos (em Barcelona, Karlsruhe, Utrecht, Basiléia etc.)
exibem obras atinentes ao período pré-situacionista (letristas, grupo Cobra),
ou, então, aquelas que dizem respeito aos primeiros cinco anos da I. S. Dos anos
posteriores, são de fato expostas apenas as capas das revistas ou fotos de
grafites do maio parisiense. Não causa assombro, pois, que uma conferência da I.
S. de 1962 definisse que cada produção artística fosse, doravante, classificada
como “anti-situacionista”. Tratava-se, agora, de realizar a arte.
Voltemos, porém, alguns passos, remontando ao ano de 1946. O jovem
Isidor Isou, recém chegado da Romênia, fundou o Letrismo em Paris. Ele
tencionava completar a destruição da linguagem das formas - a qual já havia sido
iniciada há um século -, reduzindo a expressão ao mais simples elemento, ou
seja, às letras e ao mero som. Dessa extrema negatividade, retomada uma vez mais
pelo próprio dadaísmo, dever-se-ia seguir, então, a fundação de uma nova
civilização, baseada na criatividade universal e na juventude. Em 1951, então
com dezenove anos, Debord associa-se ao pequeno movimento, e, de pronto,
apresenta seu primeiro filme: Uivos para Sade, um filme sem qualquer imagem e
que tem, como áudio, uma colagem de citações. Logo em seguida, funda um grupo
ainda mais marginal, a Internacional Letrista, cujos participantes, à medida que
procuram furtar-se a todas as coerções da sociedade do pós-guerra, terminam por
desenvolver mais elementos no intuito de traçar uma nova cultura, cuja
fundamentação, em vez de residir no trabalho, deveria ser o jogo universalizado:
a prática da “dérive”, a “errância” que conduz à psicogeografia, sendo que os
mapas psicogeográficos das cidades prestam testemunho disso. A pesquisa acerca
dos efeitos psíquicos da cidade sobre o indivíduo errante não deveria constituir
nenhuma forma artística, senão atender ao futuro “urbanismo unitário”: a
fundação de novas cidades com vistas à invenção de novas formas de
comportamento. Ambições ainda maiores se achavam por trás da ideia de “détournement”,
de “desvio de finalidade”: que consiste em tomar elementos previamente
disponíveis, para lhes conferir, num novo contexto, um sentido inovador e
revolucionário. Esse enfoque é reencontrado em quase todas as produções
situacionistas, como, por exemplo, nas Mémoires de Debord, obra de colagem na
qual este último, com o auxílio de frases e imagens recortadas de livros e
periódicos, conta a história da Internacional Letrista; mas também em seus
filmes, os quais, na maior parte das vezes, consistem em imagens provenientes de
outras fontes, hauridas dos clássicos do cinema e dos quadrinhos, bem como nas
imagens do mercado de pulgas, às quais Asger Jorn tratou de acrescentar
elementos adicionais; ou, ainda, alguns anos mais tarde, no livro de Debord “A
sociedade do espetáculo”, o qual contém muitas frases modificadas dos clássicos,
assim como em banais tiras de quadrinho, onde se procura colocar propaganda
situacionista na boca das personagens. Enquanto a colagem dadaísta baseia-se na
desvalorização dos elementos utilizados, o “détournement” outorga-lhes um novo
valor, libertando Marx e Hegel da fossilização e afirmando, outrossim, que devem
colocar-se à disposição de todos os indivíduos como meios de expressão e
intervenção, sem qualquer limitação imposta por artistas ou outros
especialistas.
Em 1957, junto com mais alguns artistas e intelectuais – tais como,
por exemplo, o pintor dinamarquês Asger Jorn, o pintor italiano Pinot Gallizio e
o inglês Ralph Rumney - Debord fundou a Internacional Situacionista, à qual se
juntaram, de imediato, o arquiteto holandês Constant, o grupo de pintores Spur,
de Munique, e ainda outros mais. Pensamentos e elementos artísticos surrealistas
e expressionistas juntavam-se à elaboração de uma teoria da revolução, que se
referia a Marx e ao anarquismo, mas que já não tinha mais nada a ver com o
comunismo oficial. Essencialmente, nos primeiros anos, a I. S. dizia respeito a
uma “revolução cultural” e à busca experimental por novas formas de vida,
incluindo suas condições materiais e intelectuais: mesmo as “situações
construídas” que davam nome ao movimento. Representativos dessa fase inicial
foram, por isso, os modelos de Constant para uma cidade utópica denominada “Nova
Babilônia”, a qual deveria servir a um nomadismo constante e ao jogo, a “pintura
industrial” de Pinot Gallizio, feita em grande estilo com produtos químicos e
máquinas, e que era vendida por metro e podia ser agrupada em “ambiências”
totais, tal como, por exemplo, a assim chamada “Caverna da antimatéria”, bem
como a pintura neoexpressionista e as provocações do grupo Spur.
Mas os conflitos entre os artistas no interior da I. S. e do grupo em
torno de Debord, que se achava focado na teoria e no compromisso organizatório e
que não queria, pois, um “enésimo” grupo vanguardista de artistas voltado às
exposições, agravou-se mais e mais, culminando finalmente na exclusão ou na
saída de quase todos os artistas. A partir de 1962, em sua versão recomposta, a
I. S. só estava interessada na arte, de fato, dentro dos limites de sua
superação sob a forma de uma revolução social. Em 1962, Debord apresentou, a
título de “obras de arte” irônicas, algumas “diretivas” pinçadas sobre a tela,
representando a “abolição do trabalho alienado”, ou, então, a “realização da
filosofia”. Os poucos integrantes da I. S. desenvolveram uma agitação bem
direcionada - sobretudo mediante a escrita -, que contribuiu fortemente para a
formação do clima que culminou, por fim, no maio parisiense, do qual os
situacionistas participaram ativamente e no qual eles viram a confirmação de
suas representações de uma revolução moderna – direcionada não mais apenas
contra a miséria material, senão também contra a alienação numa sociedade
capitalista da abundância e, justamente, do espetáculo. Alguns anos depois,
Debord dissolveu a I. S., mas continuou trabalhando em sua lenda, tecendo sua
própria imagem lendária com um êxito digno de nota, ainda que com uma certa
demora em termos temporais.
Em sua obra principal, “A sociedade do espetáculo”, publicada alguns
meses antes da revolta mundial de 1968, Debord esclarece que o espetáculo não
consiste, em absoluto, apenas nas mídias. Trata-se, antes do mais, de um estágio
de desenvolvimento do próprio capitalismo, no qual a vida é substituída pela
contemplação passiva. De modo explícito, Debord inclui nessa lógica igualmente
as assim chamadas sociedades comunistas. O espetáculo serviria à conservação da
sociedade de classes por meio da contínua organização da passividade: o consumo
de mercadorias e a ideologia substituem toda ação auto-determinada, as imagens
suprimem a realidade. Segundo a filosofia, também a arte se tornou uma
componente do espetáculo, porque, nela, os seres humanos contemplam o possível
emprego das forças de sua espécie, em vez de realizá-las em seu próprio
dia-a-dia – exatamente do mesmo modo que ocorre na religião. A cultura moderna,
de acordo com Debord, defendeu-se contra esse papel, voltando-se à realização
das paixões que a cultura até então se limitava a expor. O ápice e o término de
tal revolta da cultura moderna contra a sociedade foram os dadaístas e
surrealistas, os quais também deram um passo decisivo rumo a uma aliança, para
lutar junto com o proletariado revolucionário de sua época. Mas, no entender de
Debord, os dadaístas tencionavam abolir a arte sem realizá-la, e os
surrealistas, por sua vez, desejavam realizá-la sem aboli-la. O projeto
situacionista consistia, por isso, em levar essa tentativa adiante, de modo a
lograr a superação da arte; uma superação no sentido hegeliano, quer dizer, uma
simultaneidade de desconstrução e realização num nível mais elevado. Os
situacionistas viam-se, por conseguinte, em radical oposição às tendências mais
ou menos neo-dadaístas de sua época, as quais, no seu entender, queriam apenas
levar à frente a dissolução das formas artísticas tradicionais, para tirar disso
algum proveito artístico, mas sem ter alguma coisa a ver com a negatividade
original e com a rebelião incondicional das autênticas vanguardas; e também sem
compreender que, graças ao desenvolvimento das forças produtivas, doravante
seria possível uma realização direta dos desejos humanos. Os situacionistas, em
contrapartida, apresentavam-se como os únicos sucessores da arte radical,
justamente porque negavam a arte no intuito de manter a lealdade com seu
conteúdo mais profundo. E, depois de 1962, a “política” de maneira alguma havia
simplesmente substituído a “arte” junto aos situacionistas: formas tais como o
détournement não só continuaram a ser aplicadas, tal como foi mencionado
anteriormente, e o interesse original pela arquitetura “utópica” não levou
apenas a denunciar, com grande estridência, o horror das cidades-satélites
emergentes dos anos sessenta, senão que a inteira concepção situacionista de
sociedade baseava-se no détournement: tudo já está disponível, tendo tão somente
que ser ordenado de modo diferente.
O que resta disso hoje? É claro que as inúmeras e atuais alusões
feitas à I. S. no mundo da arte dificilmente podem referir-se à teoria do
espetáculo de Debord, que parece exigir o ultrapassamento da própria forma
artística. Em todo caso, nenhuma forma atual de arte pode fiar-se diretamente em
tal teoria. Quando Debord, em 1985, em seu prefácio à reimpressão da revista
letrista Potlatch, publicada de 1954 a 1957, traçou um balanço do
desenvolvimento da arte moderna desde tal data, ele foi implacável: “A partir do
pano de fundo do pensamento de 1954, o veredito da Potlatch acerca do fim da
arte moderna parecia algo extremamente exagerado. No entanto, uma longa
experiência nos ensinou – embora às vezes se duvide disso, já que ninguém pode
oferecer uma outra explicação a respeito -, que, desde 1954, seja lá onde for,
não temos mais visto um único artista ao qual se devesse conceder um real
interesse. Também estamos cientes de que, fora da Internacional Situacionista,
ninguém mais havia tencionado formular uma crítica central a essa sociedade,
apesar de esta última se desmoronar ao nosso redor e estender, torrencialmente,
seus desastrosos fracassos, esforçando-se contínua e apressadamente para juntar
suas novas falhas”. (DEBORD, 2002).
Independentemente daquilo que se possa pensar a propósito de uma
afirmação tão drástica como essa, permanece um fato que a crítica do espetáculo
de Debord constitui, até hoje, a parte no mínimo integrável - “recuperável”,
como diziam os próprios situacionistas – de sua atuação, sendo, nessa medida, a
parte “política”. Sem dúvida, também o ativismo midiático, a guerrilha da
comunicação, os projetos alternativos de construção de cidades, o “hacktivismo”
na net, a arte do plágio, o software livre, a mixagem musical, o caminhar como
obra de arte etc. frequentemente aludem, hoje em dia, às ideias situacionistas,
ou, quando não, diretamente a Debord. Mas esses tipos de arte, quase sempre com
algum teor crítico-social, podem igualmente passar muito bem sem essa
referência. Obviamente, cada um está livre para escolher suas fontes de
inspiração, para, aí então, fazer com elas o que bem quiser, sendo que aqui não
se trata de outorgar ou denegar, a quem quer que seja, atestados de fidelidade
em relação ao original.
O próprio Debord teria dito, por certo, que a tais enfoques faltam
coerência, radicalidade e negatividade. O que interessa aqui não é, porém, seu
juízo pessoal, senão que a atualidade objetiva de suas ideias – e, sem dúvida,
tal atualidade está sobretudo no conceito de espetáculo como forma inovadora e
contemporânea de crítica ao capitalismo. No entanto – sendo que isso é decisivo,
quando se trata do nexo de relações entre “arte” e “política” (ou, então, entre
anti-arte e anti-política) -, a elaboração da crítica do espetáculo não teria
sido possível sem a história prévia da cultura moderna, bem como de sua
tentativa de descerrar uma nova vida, mas com o desejo simultâneo de não recair
uma vez mais na pura arte (ou literatura), tal como ocorrera, em contrapartida,
com os surrealistas. Se a “Sociedade do espetáculo” de Debord (obra que hoje
possui, com efeito, mais leitores do que possuía à época em que fora publicada,
e leitores que, muitas vezes, nem sequer desconfiam que se trata de um livro com
mais de quarenta anos de idade) e “O homem unidimensional” de Herbert Marcuse
(publicado três anos antes) são praticamente os únicos livros crítico-sociais
dos anos sessenta que ainda permanecem atuais, isso também se deve, sem dúvida,
ao fato de retomarem os aspectos mais importantes e esquecidos da teoria
marxiana, a contrapelo do marxismo tradicional fossilizado pelas universidades e
pelos assim chamados partidos comunistas, a saber: a crítica da mercadoria e do
valor, do dinheiro e do trabalho, do fetichismo e da alienação.
Mas, a renovação da crítica marxiana fundamental operada por Debord
não foi o resultado de seminários “marxológicos” ou de lutas de facção no
interior de partidos leninistas, senão que se baseou na destruição e
reconstrução do sentido na história da cultura moderna, a qual, para Debord,
consiste essencialmente na história de sua autosuperação enquanto cultura, para
então lograr uma forma de vida mais elevada para todas as pessoas. Aqui, a
“poesia” é sempre vista como uma forma de vida, e não como uma espécie de
tesouro de formas. Na arte e literatura radicais, muito mais do que no movimento
trabalhista referido a Marx, conservara-se uma perspectiva integral do ser
humano, em vez de sua redução à economia, de sorte que havia crítica ao trabalho
e ao dia-a-dia alienado, à perda de substância do indivíduo e ao
“desencantamento domundo”. Contudo, o protesto contra esse mundo não podia
limitar-se à esfera artística, e tampouco bastava que indivíduos ou pequenos
grupos, levados pelo sonho e pela imaginação, buscassem o maravilhoso nos nichos
do dia-a-dia, ou, então, em suas própria profundezas, tal como o fizeram os
surrealistas. Inversamente, tampouco deveria tratar-se da subordinação da arte a
fins políticos. A cultura e a revolução da linguagem das formas na arte moderna
deveriam, antes do mais, servir como modelo de uma dissolução das formas
tradicionais de vida, bem como de invenção de novas formas. Sendo que isso, uma
vez mais, segundo a argumentação de Debord, teria de ser organizado como
processo revolucionário, pois, do contrário, tais processos de dissolução
serviriam apenas à reorganização do espetáculo. E foi justamente isso que
terminou por ocorrer, tal como, mais tarde, em 1988, Debord deveria anunciar em
seus “Comentários à sociedade do espetáculo”.
Mas, hoje, é precisamente essa parte das ideias de Debord que menos se
leva em consideração, já que ela não se deixa integrar a nenhum âmbito da
cultura, e menos ainda a alguma militância política; a qual, atualmente, está
voltada sobretudo para as questões de redistribuição, de modo que apenas muito
raramente empreende a pergunta pelo sentido do sistema como um todo.
Todavia, a I. S. não consistia apenas em Debord, senão, em sua fase
inicial, como foi dito, também em diversos artistas. Se Debord não os tivesse
excluído, a I. S. talvez tivesse se convertido num grupo de artistas tal como
muitos outros. De acordo com perspectiva de vários intérpretes, esse teria sido,
aliás, o melhor desfecho; estes últimos acusam Debord de ter aniquilado o
potencial criativo da organização mediante sua política sectária e dogmática.[2]
Tampouco faltaram, nos últimos vinte ou mais anos, tentativas de retomar esse
fio, tal como no caso do “neoísmo” na Inglaterra, ou, então,“Luther Blissett” na
Itália e alhures. Dérive e psicogeografia, détournement e pintura industrial,
obras de colagem e filmes sem imagens rodadas revelaram-se, porém, após um
período mais curto ou longo de tempo, como sendo igualmente integráveis ao
espetáculo. Do ponto de vista formal, não há uma diferença demasiadamente grande
entre os anúncios publicitários e os “Adbusters”[3]
que os criticam (excetuando o fato de que, comumente, trata-se das mesmas
pessoas, uma vez durante a semana e outra no fim de semana).
Todavia, o notável na fase artística da I. S., e mesmo antes na
Internacional Letrista - que, na França, há alguns anos, tem despertado quase
mais interesse do que os próprios situacionistas -, é menos a produção de obras
particulares do que a busca por uma nova civilização, uma nova forma de vida.
Além disso, os letristas e situacionistas legaram um desejo pelo “inteiramente
diferente”, um mito da radicalidade, uma exigência elevadíssima, bem como uma
figura da singularidade absoluta, componentes que ainda hoje poderiam ser
conservadas como regra de medida: elas mostraram que é possível criticar o
espetáculo sem se servir de seus meios, sem ter de aparecer na televisão, ou,
então, escrever em jornais, sem subvenções e entrevistas, sem assumir, enfim,
algum papel nas instituições artísticas e educacionais. Em que pese o fato de
isso decorrer, em grande parte, às constelações irrepetíveis dos anos de então,
as quais, por isso mesmo, não são imediatamente apreensíveis, ainda assim a I.
S. permaneceu na memória coletiva como um exemplo daquilo que grupos
estrategicamente atuantes podem levar a cabo, mesmo que estes sejam bastante
pequenos. Em contrapartida, a retomada dos temas situacionistas com vistas à
animação sócio-cultural, algo que hoje em dia não falta em lugar algum,
evidentemente consiste, ao contrário, numa zombaria e numa “recuperação”, para
aplicar uma vez mais essa palavra.
A incorporação dos situacionistas na grande história das vanguardas,
na qual, no final das contas, todos os gatos tornam-se pardos, seu sepultamento
sob os clássicos do anti-classicismo segue de mãos dadas com a renúncia a
qualquer crítica às suas ideias, como se a distância temporal tivesse
atenuado-as, removendo igualmente toda possibilidade de efeito e periculosidade,
como se tratasse, enfim, de uma aparência pertencente a uma época remota, a qual
se acha, doravante, para além do bem e do mal. A esse propósito, há ao menos um
ponto que ainda vale a pena ser criticado hoje em dia: sua crença no progresso.
É ela que, de fato, faz com que os situacionistas se tornem obsoletos sob uma
determinada ótica. O gigantesco desenvolvimento das forças produtivas
desempenharam um papel central para a nova civilização que os situacionistas
tencionavam introduzir. A seu ver, era a automatização que deveria possibilitar
a travessia rumo a uma civilização do jogo, em vez do trabalho.[4]
A “construção de situações” e de sua decorrente ambiência material[5]
deveria revolucionar o dia-a-dia – e isso no sentido de elevá-lo ao patamar que
se tornara possível a partir do desenvolvimento técnico consoante aos anos do
pós-guerra. Sua ideia de que a arte como expressão das paixões estaria
ultrapassada, porque as paixões mesmas poderiam, agora, ser vividas
imediatamente, nos termos de uma “arte da vida” de tipo mais elevado,
significava, pois, que isso se tornara possível apenas à sua época, i. e.,
naquele momento histórico determinado A partir daí, os progressos do domínio da
natureza teriam tornado a arte supérflua, “defasada”, do mesmo modo como outrora
ocorrera com a religião. Tal como esta última e, posteriormente, a própria
filosofia, a arte consistiria numa alienação, a qual deveria ser imputada a uma
dominação ainda insuficiente da natureza. É claro que há muito de Hegel nessa
teoria de graus, mas, sem querer, há também muita confiança vulgar-marxista no
progresso técnico, o qual seria concomitante com o progresso social, caso as
classes capitalistas não o tivessem obstaculizado.
Por certo, mesmo nos anos cinquenta, os situacionistas não eram assim
tão ingênuos quanto a isso, e colocavam, já, a questão acerca do controle da
nova técnica. Afirmavam, inclusive, que queriam arrancar as técnicas de
condicionamento do Estado e aplicá-las a outros fins; a antiga ideia de
indivíduo inviolável seria, em todo caso, algo ultrapassado.[6]
Numa direção semelhantemente duvidosa seguia sua apologia da “pintura
industrial” de Gallizio, com a qual o artesanato estaria, em definitivo,
superado no âmbito da arte.[7]
Mas é igualmente importante frisar que a música a ser dançada, por assim dizer,
transformou-se rapidamente, de sorte que já nos anos sessenta os situacionistas
passaram advertir com insistência para os perigos da cibernética enquanto
administração totalitária de seres humanos. A partir de 1972, ou seja, com o fim
da I. S., Debord então procedeu a uma crítica radical da sociedade industrial.
E, se hoje diversas abordagens ultra-tecnológicas na arte ou na net referem-se
aos situacionistas, há também, na França em todo caso, pessoas que inversamente
levam à frente a crítica fundamental situacionista por meio da resistência
teórica e prática contra a desertificação da vida promovida pela sociedade
industrial, algo que vai muito além de um mero “ecologismo” e que lança a
pergunta pelas mudanças na própria vida e no estatuto do sujeito. Alguns dos
“ceifeiros voluntários”, que aniquilam plantas geneticamente manipuladas nos
campos de experimentação, pertencem a essa corrente e já fizeram, ao menos na
França, mais coisas contra a expansão da tecnologia genética do que todas as
petições juntas...
A afirmação situacionista de que a superação da arte seria doravante
possível e que, devido a essa possibilidade, toda e qualquer continuação da arte
seria algo meramente reacionário, expondo apenas uma sabotagem, ou, então, uma
espécie de violação de cadáver, parece estar intimamente ligada, em retrospecto,
à revolucionária atmosfera de renovação dos anos sessenta: se o horizonte é
realmente aquele da “inversão do mundo invertido”, ou seja, da revolução da
totalidade, então, de fato, a mera sugestão de uma nova corrente artística
parece ser uma atitude demasiadamente modesta (tal como fizeram, na França, por
volta de 1962, os “nouveaux réalistes”, que ostentavam alguns pontos de
convergência com os situacionistas). No entanto, passadas algumas décadas, a
revolução já não pareceria, em absoluto, estar à beira de sua realização, senão
que já seria um enorme ganho, se a irremediável conversão do capitalismo em
barbárie pudesse ser ao menos obstaculizada. Sob tais circunstâncias, a pergunta
pela superação ou prolongamento da arte coloca-se de um modo totalmente
diferente hoje em dia, mesmo que se queira continuar relacionando-a à
radicalidade situacionista. Talvez fosse possível, doravante, fazer justiça a
Theodor Adorno com uma argumentação “situacionista”. Em sua “Teoria estética”,
este último resume que, mesmo 150 anos após o prognóstico de Hegel, não se
consumou um fim da arte. “Porque no mundo não há nenhum progresso, há um
progresso na arte. 'Il faut continuer' ['cumpre continuar'] (...) Com efeito, a
arte continua enredada naquilo que Hegel chama de espírito universal e, por
isso, é dele cúmplice, mas ela só poderia escapar a essa culpa, na medida mesma
em que se suprimisse, promovendo, com isso, a dominação sem linguagem e cedendo
terreno à barbárie”. (ADORNO, 1970, pp. 309-310) Para Adorno, o pensamento de
uma superação da arte era algo completamente atual, sendo que, a seu ver, a arte
não apresentava nenhuma figura eterna da existência humana. Mas, em certa
medida, por conta daquilo que ele chamava de “contexto universal de cegueira”, a
arte mesma constituía, no seu entender, o menor dentre todos os males. Eis o que
os situacionistas não queriam admitir de modo algum nos anos sessenta. No
entanto, os últimos quarenta anos terminaram por fazer jus ao pessimismo de
Adorno. Hoje, a arte poderia, pois, expor o último resíduo possível de liberdade
– apenas em sua mera “aparência superficial”, é claro, mas isso ainda seria
melhor do que a completa ausência de liberdade. Os situacionistas, em
contrapartida, acreditavam que a arte seria “muito pouco” em vista daquilo que
denominavam “o grandioso desenvolvimento possível”.[8]
Não é a radicalidade de sua crítica ao capitalismo que apresenta um defeito,
senão que a fixação dessa crítica ao capitalismo numa ideologia do progresso, a
qual eles haviam herdado do marxismo tradicional e a qual se baseava, em última
análise, na crença num desenvolvimento benéfico das forças produtivas. O escasso
interesse pelas possibilidades técnicas também foi uma das principais
recriminações que, de início, eles fizeram aos surrealistas.
Mas, desde que o desenvolvimento das forças produtivas revelou-se um
pesadelo, após ter excedido um dado limite – seja porque o projeto de sua
apropriação emancipatória fracassou, seja porque, a partir de um dado volume, a
tecnologia escapa a qualquer controle possível -, a arte poderia, hoje,
apresentar o último refúgio de um possível estado “diferente” de coisas. Mas
qual arte? Eis, pois, a questão. A ligação entre arte e vida, quer dizer, a
integração da arte na vida e/ou a integração da vida na arte eram a grande
aspiração de uma parte das vanguardas, de Rimbaud a Duchamp, das vanguardas
russas aos situacionistas, e também do movimento Fluxus, de Beuys e assim por
diante. O capitalismo pós-moderno terminou por concretizar, finalmente, essa
pretensão supostamente revolucionária sob a forma de uma integração da arte na
publicidade e na moda, no estilo de vida e na pedagogia social.
Do início ao fim de seu itinerário, Debord sempre se referiu aos
dadaístas. Sob uma determinada ótica, ele tentou renovar o espírito destes
últimos, ou, melhor dizendo, procurou fazer algo igual ao que haviam feito,
tomando o mesmo desafio, e, não por acaso, caracterizou a inteira atividade dos
situacionistas como uma “contínua apologia” do dadaísmo.[9]
Mas, nem ele e tampouco os demais situacionistas tentaram apreender ou levar
adiante as obras dos dadaístas. Ao contrário, tal como já foi dito, eles se
voltaram contra todo “neo-dadaísmo”, contra qualquer exploração de suas ideias,
depois que o fogo que os alimentava foi apagado. Para Debord e os
situacionistas, tratava-se de acender um novo fogo, para, aí então, reiniciar o
“assalto ao céu”.19 Aquele que hoje tenciona referir-se aos situacionistas
deveria aludir, antes de tudo, ao seu espírito: sua independência, sua
sagacidade estratégica, sua recusa a toda carreira, sua luta contra o capital e
o Estado, sua intransigência e seu desprezo por todas as meias medidas, assim
como por aqueles que com elas se satisfazem...
Referências
ADORNO, Th. W. Ästhetische Theorie.
Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1970, pp. 309-310.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. Citado
na versão alemã: Berlim: Tiamat, 1996.
___________ Potlatch. Berlim: Edição Tiamat, 2002
___________ Correspondance. Paris: Fayard, 2008,Vol. 7)
GREIL, M. Lipstick Traces. Eine geheime Kulturgeschichte des 20. Jahrhunderts.
Hamburgo: Rogner & Bernhard bei Zweitausedeins, 1992.
*
Jappe, Anselm. “Die Situationisten und die Aufhebung der Kunst: Was bleibt davon
nach fünfzig Jahren?”.
In: EXIT! 8. Berlim, Horlemann, 2011, pp. 209219. Tradução de Fernando R. de
Moraes Barros. (Universidade Federal do Ceará - UFC)
[1] Guy Debord. Pescara, ed. Tracce,
1993; edição inglesa: Los Angeles, Universidade da California,
1999; cf. ainda edição
portuguesa: Lisboa, Antígona, 2008.
The Assault on Culture:
Utopian currents from Lettrisme to Class War.
Londres, Aporia Press e
Unpopular Books, 1988.
[3] Referência à organização
anti-consumista fundada em 1989 por Kalle Lasn e Bill Schmalz. Do
inglês,
o termo é composto pelo
prefixo “ad”, abreviação de “advertising” (publicidade, propaganda,
reclame
etc.), e pelo sufixo “buster”,
o qual designa, aqui, “caçador”, “destruidor”, “aniquilador”. Daí, o seu
teor
disruptivo-negativo. (N.T.)
situationniste n°1 (1958)
[Edição alemã: Hamburgo, Nautilus, 1975)
[5] No original, des entsprechenden
Dekors. Dekor (décor) assume, aqui, o sentido ulterior de
“ambiente” material.
[6] Cf. “Der Kampf um die Kontrolle
der neuen Konditionierungstechniken”. In: Internationale
situationniste n° 1 (1958)
[7] Cf. Internationale
situationniste n° 2 (1958), p. 27.
[8] Cf. “Herrschaft über die Natur,
Ideologien und Klassen”. In: Internationale situationniste n° 8
(1963).
[9] Cf., a esse respeito, carta de
Guy Debord a Marc Dachy de 07.09.1988 (In: Debord, Guy.
Correspondance.
Paris, Fayard, 2008,Vol. 7)